sexta-feira, 31 de maio de 2013

Mini, micro, nano, twitterconto


O dinosaurio de Monterroso
O escritor guatemalteco Augusto Monterroso é apontado como o autor do mais famoso deles ("Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá."); do americano Ernest Hemingway, disseram erroneamente ter ele escrito um dos mais tocantes ("Vende-se: sapatos de bebê, sem uso."). Outros tantos autores aventuraram-se - e continuam diariamente a se arriscar - na produção de brevíssimas narrativas como estas, mas a verdade é que a academia ainda tarda a reconhecer os chamados minicontos (ou microcontos, ou nanocontos, ou twittercontos, seja lá o termo com o qual se denominem tais textos) como um novo gênero literário.

Os sapatinhos de Hemingway:
famoso miniconto era
provavelmente um slogan
publicitário de 1917
associado ao escritor
apenas nos anos 1990
Os minicontos - adotemos esse epíteto para abarcar todos os seus subgêneros - reservam semelhanças constitutivas com o conto contemporâneo, como a necessidade da existência de um conflito, mas também têm características que lhe são peculiares e os diferenciam do que seria apenas um conto de extensão mais breve. O miniconto traz em si as preocupações da literatura contemporânea - sugerir mais que contar, dar ao leitor espaço para que ele construa em sua mente tudo o que o texto literário não coloca de forma explícita. É forte o seu caráter de concisão, mas o miniconto não é apenas um texto curto: ele retrata um excerto de vida, traz um subtexto que aflora mesmo com tão poucas palavras e, mais que tudo, representa uma totalidade e não apenas um fiapo de narrativa. Narratividade, aliás, é um bom critério para separar o que é um miniconto do que é apenas uma frase de efeito. Os dois exemplos acima, de Monterroso e Hemingway, mostram com perfeição o que o miniconto se propõe a ser.

Leonardo Brasiliense
A tecnologia atual apenas intensificou algo que já era praticado por diversos autores desde meados do século XX. O uso das mensagens SMS - e seu mais famoso derivado, a rede social Twitter, na qual os membros tem um espaço de 140 caracteres para expressar suas ideias a cada vez - fez com que escritores de todo o mundo se lançassem ao desafio de fazer uma literatura que coubesse nas limitações oferecidas por essas ferramentas. A produção, há que se dizer, é irregular e muitas vezes não passa de frases de efeito, quase slogans publicitários que os próprios autores chamam de miniconto por desconhecerem o que é um conto e suas regras de formação - a ponto de um famoso romancista gaúcho ter declarado certa vez, para seus alunos, que "minicontos são minibobagens". Alguns não são nada bobos, sobretudo aqueles feitos por autores despreocupados em simplesmente bater o recorde de escrever um conto com o mínimo de caracteres possível. E temos mesmo verdadeiros mestres nesse quase gênero literário, como o premiado escritor gaúcho Leonardo Brasiliense:

 Réquiem para Teresa
Notáveis os olhos de Teresa. Grandes. Inspiravam saudades não sei de quê. Por vezes eu tive vontade de comê-los. Hoje me contentaria em beijá-los. Impossível, pois a matei. Pior: acusei-a de nunca ter existido, mesmo reconhecendo que mentia. Teresa hoje é nada, um nadinha varrido para baixo do tapete, lá onde frequentemente tropeço.



Que universo imenso construído por Brasiliense em tão poucas palavras - sem a ditadura dos 140 caracteres, longe do modismo da frase única para contar uma história. Quantas viradas de expectativa causa no leitor, quanta vida por viver, quanta reflexão despertam as confissões guardadas nessas poucas linhas! Em escala macro ou nano, o que prende o leitor é sempre a mesma coisa: uma história bem contada.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.





Felipe Montero e a diabólica duplicidade da vida

Carlos Fuentes
Carlos Fuentes
A natureza dupla do homem – alma e corpo, feminino e masculino – está presente na literatura ocidental desde a Gênese, na qual a criação do gênero humano é explicada pela partição do ente em dois princípios distintos, quase opostos, mas complementares e partícipes de uma mesma unidade metafísica. Essa situação de duplicidade permaneceu no imaginário ocidental e multiplicou-se pelas inúmeras narrativas nas quais os espelhos, reflexos e sombras assumem a simbologia das duas partes de um mesmo todo que se buscam no intuito de solucionar o que, em verdade, é um sinal de insuficiência do ser como uno.

Em Aura, instigante novela escrita pelo mexicano Carlos Fuentes em 1962, o autor revisita a idéia do duplo no que ela guarda de sinistro e perturbador. É uma novela fantástica, se assumimos o termo como referente à “vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural” : a narrativa acompanha a trajetória de Felipe Montero, um “historiador joven, ordenado, escrupuloso” ao qual desperta a atenção um anúncio de jornal que parece ter sido escrito para ele, convocando para um emprego em uma residência particular na qual uma viúva, Consuelo, deseja organizar em um livro os diários e escritos do esposo, um general falecido há setenta anos, antes que ela mesma venha a morrer; uma vez aceita a incumbência, Felipe passa a viver na casa lúgubre, na qual encontra um interesse amoroso na jovem Aura, apresentada como sobrinha e cuidadora da residência e da senhora, e em cujo amor Felipe virá a descobrir seu próprio destino e as razões pelas quais fora chamado para tão estranha função.

Usando a expressão de Todorov, Felipe vacila diante dos acontecimentos inexplicáveis aos quais é apresentado – a simultaneidade e repetição das ações de Consuelo em Aura, o espaço claustrofóbico e os elementos inesperados e funestos que encontra na casa: de ratos que convivem harmoniosamente com a viúva às inexplicáveis incongruências que encontra entre as datas que pesquisa nos escritos do general e a história da velha senhora que o contratara. Em cada um desses elementos, a idéia do duplo é recorrente e reforça a impressão desconcertante que causa a novela de Fuentes: Consuelo e Aura mostram-se os dois lados de uma mesma mulher construída em dualidades – velhice e juventude, passado e presente, material e etéreo; os ratos reais que infestam o quarto de Consuelo são o oposto dos gatos cujo ronronar é ouvido por toda a casa, a imagem é vista pela clarabóia mas que não aparecem como formas concretas de existência; os fatos e datas relatados nos documentos, matéria-prima do ofício de Felipe Montero, são a negação da realidade com que o jovem convive nos dias de sua tarefa naquela casa.

O duplo na literatura e na cultura ocidental guarda também uma idéia de diabólico – a lenda de Lúcifer como o anjo mais perfeito de Deus que se torna seu maior contendor na disputa pela alma dos homens é o exemplo mais notável. Em Aura, símbolos religiosos convivem com elementos comumente associados à magia negra e corroboram o jogo de duplicidade estabelecido pelo autor. A sobrevivência das personagens, sua presentificação no mundo e a própria razão de ser da permanência do protagonista naquela casa mostram-se intimamente ligadas à idéia algo demoníaca de busca da eternidade, um tema igualmente caro aos escritores ocidentais.

FUENTES, Carlos.
Aura.
(Ed. L&PM)
Contudo, Aura destaca-se no panorama do gênero novelesco – dos textos aos quais os falantes de língua espanhola chamam novela corta – pela forma como o autor incluiu o leitor no universo de seu tema principal, a duplicidade da vida: o narrador-protagonista é apresentado por meio de uma narrativa totalmente construída na segunda pessoa do singular – em espanhol, . Tal forma, que na tradução para o português – você – pode sugerir uma tentativa de generalização do texto por parte do autor, traz no original ao leitor a sensação de uma total inclusão sua na história; cabe ressaltar que o pronome pessoal , em espanhol, é bastante informal e denota intimidade entre os interlocutores, e raramente é usado como forma generalizante naquela língua da mesma maneira que no português. Com isso, o leitor de Aura é lançado diretamente na narrativa: “Lees ese anuncio: una oferta de esa naturaleza no se hace todos los dias. Lees y relees el aviso. Parece dirigido a ti, a nadie más. (...) Tu tomas el lugar de Aura, estiras las piernas, enciendes um cigarillo, invadido por um placer que jamás hás conocido, que sabías parte de tí (...) .” A história de Felipe Monturo passa a ser sua história, e corrobora para tal impressão o uso ocasional de imperativos – como se o narrador estivesse a controlar as ações do protagonista, desse tú a quem se refere continuamente, ao invés de meramente as contar . O leitor torna-se um duplo do protagonista, Felipe Montero, de quem acompanha os passos, as sensações e os pensamentos durante todo seu percurso pelo espaço labiríntico de Aura.

A novela, na qual as duplicidades entre vida e morte, memória e esquecimento, juventude e decadência são a temática principal, coaduna-se com o simbolismo maior do duplo mesmo ao propor algo distinto, ainda que não completamente, ao que a psicanálise e a literatura – do Dorian Gray de Wilde ao Dr. Jeckyll de Stevenson – sempre encontraram como solução para tal enigma: a assimilação do duplo, sua aceitação, não tem outro objetivo senão o de aniquilá-lo, já que o espelho, ao tempo que mostra o reflexo, também deturpa a imagem refletida. Em Aura, a assimilação representa também a sobrevivência, a eternidade de uma essência que só encontrará razão de ser entre as paredes de esquecimento da infausta casa.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.
***A coluna foi publicada excepcionalmente na sexta-feira por conta do feriado de Corpus Christi.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Ah, Elmo...

O que será que o ilustrador tinha em mente quando pensou nesta capa para um livro da série VILA SÉSAMO chamado "ELMO EXPERIMENTA"...impresso em páginas "super duras"? Acreditamos que o teor erótico da ilustração não tenha sido intencional. Mas um pouco mais de cuidado com a capa dos livros infantis não faria mal a ninguém.

Dentro do livro, um apartamento

O anúncio encontrado pela equipe da Sapere Aude! Livros dentro de um dos volumes usados que chegaram para venda na livraria é tentador: um apartamento situado próximo ao centro da cidade, em um quarteirão tranquilo, no segundo andar de um edifício pequeno, com cinco peças - sala de jantar, cozinha, três quartos, banheiro. É um apartamento antigo, no qual ainda havia a separação entre quarto de banho (salle de bains) e WC. O endereço? 8 Rue Racine.

O nome da rua é sem dúvida uma homenagem a um dos mais proeminentes dramaturgos da França, Jean Racine (1639-1699), famoso por suas tragédias, em especial Fedra. Contemporâneo de Molière, que alcançou notoriedade como comediógrafo, Racine teve algumas de suas tragédias encenadas pelo amigo no Palácio Real, como mostra o filme Marquise (1997).

Mas como deixar de lado a curiosidade sobre o tal apartamento?

Começamos verificando se o imóvel em questão era em Paris - o anúncio está escrito em francês, afinal. Mas o número 8 da Rue Racine na capital francesa abriga a Ecóle Royale Spéciale de Dessin, uma escola fundada em 1766 pelo pintor Jean-Jacques Bachelier para a educação artística de artesãos, a qual depois seria a Escola de Artes Decorativas de Paris.

Ecóle Royale Spéciale de Dessin, Paris



Tampouco seria em Montrouge, perto de Paris, onde hoje funciona uma escola infantil. Ou em Orsay, onde não há nenhum prédio de três andares, mas um chalé bucólico e um jardim florido. Em Nantes, o número 8 deu lugar a uma praça. No Canadá, encontramos uma concessionária de automóveis em Casselman, um posto de gasolina em Sanguenay, uma igreja em Baie-Saint-Paul. Na Bélgica, uma garagem em Wavre, um bosque em Namur... Nossa busca não pôde se estender mais que isto, pois uma rua chamada Racine na França é algo tão comum como uma rua de nome Getúlio Vargas no Brasil... Sem conseguirmos precisar a qual cidade pertencia o apartamento - e sem mesmo saber quando foi escrito esse bilhete à máquina de escrever -, cabe-nos apenas torcer para que tenha sido um bom negócio.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Colunistas: LIVRE-SE DO GUILTY PLEASURE



Eu gosto muito mais de literatura fantástica atual do que dos clássicos literários em geral. Tenho vinte e seis livros do Stephen King e planejo alcançar toda a coleção antes que o velho escritor morra (e continue digitando do além, se bem conheço ele). Também tenho um livro do criador de CSI, Grau 26, e não tenho vergonha de dizer que é um dos thrillers de ação e suspense atuais que mais me chamou a atenção, tanto pela escrita quanto pela tentativa de fazer uma obra transmídia (ao final de cada capítulo você recebe um código para ativar no site do livro e receber um vídeo com cenas extras). Eu nunca li Paulo Coelho, mas vejo valor no que ele fez pela literatura brasileira no estrangeiro e tenho um livro dele na estante esperando sua vez de ser lido. Ah, e vale lembrar que eu também coleciono quadrinhos e adoro o traço e as histórias de Mark Miller, mesmo que todos digam que ele está ficando caduco.

Existem pessoas me julgando agora por conta de todos os autores que coloquei acima. Isso sempre acontece, com todo mundo. Quando você diz que gosta ou que não gosta de alguma coisa, uma pessoa ao teu redor (ou na tua rede social) irá te julgar a partir daquilo. Então classificamos o que é aceitável pela maioria (maioria intelectual, diga-se de passagem, porque realmente não ligamos pra opinião de gente “inferior” a nós) e o que não é aceitável. Para muitos amantes da literatura, Stephen King, Paulo Coelho, Zibia Gasparetto, Stephanie Meyer e tantos outros autores que não dedicaram suas vidas a produzirem uma obra clássica e revolucionária não são dignos de serem aceitáveis. E é por causa desse julgamento que mulheres leem Cinquenta Tons de Cinza e escondem esse fato a sete chaves, comprando o segundo e o terceiro volume e dizendo que é pra sogra. Rapazes de vinte e cinco anos que nunca leram Harry Potter carregam o primeiro volume, tentando vencer as chatíssimas trinta primeiras páginas (na minha opinião), e o colocam atrás do último Tolstói que adquiriram. Fãs de HQs, consumidores da Vertigo, dizem que estão comprando Turma da Mônica Jovem para seus afilhados, “aqueles bobinhos”, mas devoram a revista em apenas uma ida ao banheiro.

Se você se identificou com essas pobres pessoas que escondem seus gostos mais profundos de todos o que vou dizer agora será algo libertador, então escute com atenção:

Todo mundo tem seu prazer culposo.

Aquele cara que só fala de Tolstói, Nietzsche e Dostoiévski assiste The Voice Brasil no Domingo. Aquela senhora que fala tão mal de televisão, de Big Brother Brasil e Ídolos, lê romances leves de banca de jornal, como Sabrina e Roxanne. Até aquele vereador que assiste um filme como Ted e o condena por sua linguagem e possíveis apologias, assiste Futurama quando está sozinho em casa. Todo mundo tem seu “dirty little secret” cultural. Então por que não admitimos simplesmente que gostamos de coisas que nem todo mundo gosta e seguimos adiante com a vida?

A vergonha é uma das maiores armas da censura social. Desde sempre a sociedade usou da vergonha para manter homoafetivos, mulheres, gente pobre e pessoas que pensam diferente “no seu lugar”. Não tenha vergonha de seus gostos, de suas preferências, daquilo que faz de você o que você é (agora). Somos construídos por tudo aquilo que admiramos, que nos acrescenta ou nos transforma, mesmo nos mínimos detalhes e mais imperceptíveis pensamentos. Somos afetados das mais diferentes formas pelo que consumimos e isso é completamente pessoal. Não é porque você assiste BBB, lê Cinquenta Tons de Cinza ou Paulo Coelho ou gosta do traço do Liefeld que está fadado a entrar em uma definição de “pessoa menor”. Isso tudo são apenas influências, não é quem você é diante de si mesmo ou da sociedade.

Classificar é o primeiro passo para segregar.

Fuja dessa culpa, admita que gosta das coisas que gosta e ignore quem tenta te colocar em uma classificação “inferior” à da pessoa. Entenda que se você tem algo a mais do que a pessoa que está te julgando, esse algo é coragem. Porque aquela pessoa tem seu esqueleto no armário e você tirou o seu, vestiu-o e exibe-o junto a todos os outros esqueletos que te fazem ser quem é.



Lucas Rodrigues é, segundo sua própria definição, publicitário por formação, escritor por pretensão e leitor por dileção. Foi aluno da Oficina de Iniciação à Criação Literária, que acontece na Sapere Aude! Livros quinzenalmente aos sábados. Aceitando nosso convite, trará periodicamente suas reflexões sobre seu mundo de multireferências culturais.

Com a palavra... CLARICE LISPECTOR entrevistando PABLO NERUDA

LISPECTOR, Clarice.
De Corpo Inteiro
(Ed. Rocco)
Era 19 de abril de 1969 e a escritora brasileira Clarice Lispector foi incumbida de entrevistar o poeta chileno Pablo Neruda, que já era considerado à época um dos mais importantes nomes da poesia em língua espanhola no século XX. O local era um apartamento onde se hospedava Neruda quando ia ao Rio de Janeiro - por coincidência, o mesmo edifício O resultado da entrevista foi registrado por Lispector na forma de uma apaixonada crônica,  publicada no livro “De Corpo Inteiro”, Editora Rocco, em 1999. Reproduzimos aqui apenas o jogo de perguntas e respostas entre entrevistadora e entrevistado.




Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?
Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.

Escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Tra­ba­lhar em teu ofício, se amas teu o­fí­cio, é celestial. Senão é infernal.

Quem é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.

Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
Político, poético. Físico.

Como é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.

Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?

Pablo Neruda
Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo es­crevi em um poema: "Se tivesse que nascer mil vezes./ Ali quero nascer./ Se tivesse que morrer mil vezes./ Ali quero morrer..."

Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Ma­ga­lhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.

Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia in­sensível.

Diga alguma coisa que me surpreenda.
748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)

Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você prefere na nossa poesia?
Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima. Não conheço os ma­is jovens e só chego a Paulo Men­des Campos e Geir Campos. O poema que mais me agrada é o “Defunto”, de Pedra Nava. Sem­pre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os lugares.

Que acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.

Qual de seus livros você mais gosta?
O próximo.

A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.

Qual é o seu poema mais recente?
Fim do Mundo”. Trata do século XX.

Como se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.

A critica constrói?
Clarice Lispector
Para os outros, não para o criador.

Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.

O nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan Neruda, poeta da liberdade tcheca?
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.

Qual é a coisa mais importante no mundo?
Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.

O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Depende da hora do dia.

O que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.

Você já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.

Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
Um ano, mas depende de meus trabalhos.


- Pablo Neruda foi um poeta chileno, uma das vozes poéticas mais relevantes da poesia no século XX. Foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1971, dois anos antes de sua morte em circunstâncias que ainda hoje dão margem a teorias conspiratórias, já que Neruda era uma voz ativa contra o regime recém-instalado de Augusto Pinochet e há suspeitas de que tenha sido assassinado por aquele regime ditatorial. Clarice Lispector era ucraniana de nascimento, mas chegou ao Brasil quando tinha apenas um ano e meio de idade, fugindo com seus pais da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa. Publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, em 1943 - e ao entrevistar Neruda, em 1969, já era considerada uma das vozes femininas mais importantes na literatura brasileira. Faleceu em 1977.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Meu livro preferido é... OS TRÊS MOSQUETEIROS

Ilustração de Boston Madsen

Foi lá por 1966 ou 1967. Já lia desde os cinco anos. Gostava de romances para crianças reproduzindo tramas da História do Brasil, com bandeirantes, índios, aventuras. E caiu nas minhas mãos uma edição da Melhoramentos com a adaptação do volumoso texto original de um famoso romance. Comecei a ler tendo apenas a ideia de que tratava de espadachins, o que atiçou meu interesse sempre ávido por ação. Fui avançando ao longo dos capítulos, sem conseguir parar. Lembro que, quando acabei a leitura, me vi tomado por algo inédito, sentindo uma emoção fora do comum causada por aquela história. Mais do que isto, fiquei com vontade de proporcionar a mesma emoção a outros, escrevendo uma história minha.

DUMAS, Alexandre.
OS TRÊS MOSQUETEIROS
(Ed. Zahar)
Hoje, ainda tento aprender como se faz o que Alexandre Dumas atingiu apenas com palavras bem dispostas numa estrutura narrativa. Não sei se conseguirei tocar alguém como fui tocado por aquela leitura de infância. Continuo insistindo, modestamente, no meu ofício de colaborador de autores. Tenho apenas a certeza de que tudo se divide entre antes e depois daquele livro. Até descobri, graças a uma indicação do grande escritor de novelas Walter George Durst, que "O Conde de Monte Cristo" era a obra-prima de Dumas, "o pai de todos" entre os folhetins. Mesmo dando razão ao mestre Durst, reconheço que "Os Três Mosqueteiros" ainda é meu livro favorito.

Porque traz personagens jovens e empolgados, que defendem a amizade; que se envolvem com tipos enigmáticos como a Milady; que fazem viagens através de terra e mar para defender um conceito tão ultrapassado como a honra; que aprontam todas a ponto de dobrar o maléfico primeiro-ministro e obter recompensas do rei da França; e que, principalmente, são atemporais e podem provocar num garoto dos dias de hoje a vontade de suceder a Alexandre Dumas e continuar a incendiar o espírito dos leitores.

Para quem não leu (alguém ainda não leu “Os Três Mosqueteiros”?!), recomendo.

Nelson Nadotti é roteirista de TV. O que mais curte na Sapere Aude! Livros é o entusiasmo do pessoal de lá – para não falar, claro, de todo o acervo da loja.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O conto contemporâneo e sua ressonância

O conto é uma das formas contemporâneas de prosa literária mais difundidas e aceitas. Há um sem-número de novos contistas e o gênero parece multiplicar-se em novos subgêneros cujas regras de formação estão mais ligadas à sua extensão que, propriamente, a uma mudança estrutural maior - como os chamados minicontos, microcontos ou ainda os twittercontos. Longe de ser apenas um texto em prosa mais curto que um romance, o conto é marcado por sua grande concentração narrativa, que faz dele um retrato de momento extraído da história de um único personagem, central à narração e de cujo ponto-de-vista a história é apresentada. 

Há, contudo, uma característica que é própria dos contos contemporâneos - sua ressonância final. Se nos contos folclóricos ou tradicionais há um final bem definido, uma solução do conflito retratado na história - o que também se pode observar nos contos policiais -, no conto contemporâneo não há, necessariamente, tal resposta final - pois, não raro, ele apresenta uma situação sem solução, seja por ser impossível encontrar uma saída, seja por sua ambiguidade. Tal característica dos contos contemporâneos parece refletir o momento atual da sociedade, no qual os valores universais e as verdades absolutas já não são aceitos e a indefinição parece ser o regime...

O conto contemporâneo deixa, ao final, uma ressonância - algo que irá surgir no leitor a partir das conexões entre o mundo apresentado pela literatura e o mundo que ele observa em seu cotidiano. Tais conexões não são nunca diretas, absolutas. Talvez por isso o conto contemporâneo mereça tantos debates e renda tantas interpretações. Nada ali é definitivo e o efeito é fazer o leitor ampliar seus horizontes interpretativos.

Para a construção dessa ressonância, o escritor deve estabelecer conexões entre a história e um contexto mais amplo, não raro se valendo de símbolos e intertextualidades para sugerir ao leitor caminhos interpretativos. Isso funcionará com maior ou menor efeito quanto mais universal for o conflito estabelecido na história. Toda a caracterização do contexto - espaço, tempo, personagens, etc. - pode apontar para um local ou época específicos, mas o conflito precisa remeter a algo que a experiência humana abarque em qualquer ambientação. É essa identificação do leitor com a situação ali retratada que fará o conto ressoar e deixar sua marca permanente na alma de quem lê.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Bartleby e a ausência

Frontispício de 'Four Short Novels' - New York: Bantam, 1959Ambientada na Nova Iorque da primeira metade do século XIX, a novela Bartleby, o Escriturário (‘Bartleby, the Scribner’) é considerada hoje um dos mais significativos textos da produção de Herman Melville (1819-1891), romancista estadunidense mais conhecido por seu romance Moby Dick, tido como um dos mais importantes da literatura daquele país. Contudo, a pequena novela de Melville sobre um escriturário que “prefere não fazer” as suas tarefas não foi bem recebida quando de sua publicação, tanto por sua visão inovadora - que antecipou em alguns anos o que viria a ser conhecido como realismo em literatura - quanto pela perturbadora trama.


Narrada em primeira pessoa por um advogado de Wall Street que mantém um escritório como Master in Chancery (uma espécie de tabelião, função que Melville usa como metáfora de um trabalho mecânico e pouco inspirado), a novela conta a história da admissão, pelo narrador, de um novo escriturário, Bartleby, cujo “aspecto singularmente tranqüilo, o qual poderia exercer”, na visão do patrão, “uma influência salutar” sobre os demais funcionários, cujos temperamentos são descritos pelo autor como “arrebatado” e “fogoso”. O conflito inicia-se a partir de um posicionamento inesperado de Bartleby diante de um pedido corriqueiro de trabalho feito pelo advogado: à solicitação para que ele o auxiliasse na conferência de um documento, o novo funcionário contesta com uma frase que é pelo patrão entendida como uma recusa - "I would prefer not to." Incapaz de forçar o novo empregado a cumprir suas funções, e assustado por vê-lo cada dia menos empenhado em seu trabalho como escriturário, o advogado vê-se constrangido a mudar o escritório de endereço para fugir da presença de Bartleby, que se tornara morador do escritório e cujas “recusas” sucessivas – a trabalhar, a ir ao correio, a falar sobre seu passado, até mesmo a abandonar o escritório depois de ser dispensado pelo patrão, e sempre a repetir sua fala habitual, "I would prefer not to" – ameaçavam destruir o equilíbrio inicial existente no escritório e na vida profissional do narrador.

A instigante história escrita por Melville tem a clássica estrutura do que em literatura se convencionou chamar de novela - um termo que no Brasil, infelizmente, pode causar confusão com as telenovelas, em verdade mais próximas aos melodramas do século XIX que à prosa literária -, quer seja pela concentração de tempo, pelaa escassez de personagens, pela unicidade de conflito ou pela pouca alteração de espaço. Pode-se imaginá-la, estruturalmente, em três momentos narrativos: um prólogo, no qual o narrador declara a intenção da narrativa – “relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos” os escriturários “que jamais vi e de quantos tive notícia” – e apresenta a ambientação e os demais personagens; um núcleo central, no qual é apresentado o protagonista por meio do conflito que sua atitude gera naquele escritório; e um desfecho a partir do clímax da história, que seria a prisão de Bartleby diante de sua recusa em abandonar o prédio onde o advogado tinha seu escritório e as conseqüências de seu encarceramento. A estrutura mínima usada por Melville para tal composição – cuja caracterização antecipa o realismo na Literatura em alguns anos – funciona perfeitamente para o intuito do autor de apresentar uma trama que parece ser conduzida não pelas ações, mas pela ausência delas: a “recusa” de Bartleby – a qual pode ser entendida não como uma negação, mas como uma expressão de sua vontade, à qual o patrão se sente incapaz de contrariar, já que o servidor diz apenas que “prefere não fazer” –, mais por um profundo estado depressivo de anulação da vida que por uma deliberada revolta contra o patrão, é uma ausência de ação que leva ao conflito e à exasperação do narrador que, por sua vez, tendo em suas mãos a autoridade de chefe, não a exerce.

Capa do livro em sua tradução em português, lançado pela RoccoTrata-se, “Bartleby, o Escriturário”, de uma fábula sobre a recusa humana em agir diante da vida: Bartleby, por escolha própria, fruto de um vazio existencial que é simbolizado pelo autor tanto nas atitudes passivas e anti-naturais do personagem-título quanto na revelação final de que ele fora servidor da “Seção de Cartas Extraviadas” – Dead Letter Office, literalmente “Escritório de Cartas Mortas” no original –, um órgão cuja extinção lançara Bartleby na função nova no escritório de advocacia; o narrador, que se descreve como um “desses advogados sem ambições que nunca interpelam um júri” , por conta de sua “profunda convicção de que a melhor maneira de se viver é de se encarar tudo com tranqüilidade” , a qual se mostra um disfarce para sua incapacidade de enfrentamento e de imposição de sua vontade diante dos outros homens. A inação de Bartleby, quase uma desistência diante da vida, mostra-se, por fim, mais poderosa – e corajosa – que a covardia do narrador: a recusa de Bartleby, mantida até o último instante, mesmo no cárcere, pela simples negativa – "I would prefer not to" – diante da comida que lhe é oferecida por conta do suborno que o ex-patrão paga a um dos carcereiros, torna-lhe uma tortuosa vitória, já suas preferências foram, até o fim, jamais desrespeitadas.

Se um dos sinais de uma obra clássica é sua universalidade, a qual garante um caráter também de atualidade aos temas nela propostos, "Bartleby, o Escriturário" pode facilmente ser assim classificado: seu retrato de um mundo opressivo e vazio, de uma classe de trabalhadores cujo ideal de vida é esvaziado pela ausência de sentido nas tarefas que lhe são atribuídas - e pela ausência de sonhos que lhes motivem a seguir adiante -, torna a pequena novela de Herman Melville um texto repleto de contemporaneidade.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Gramática é tão divertida!

Olhando a capa escolhida pelos editores para este livro, há que se perguntar se o título mais apropriado seria mesmo "Gramática pode ser divertida"...

Dentro do livro, um fantástico 1988

 Dentro dos livros que circulam pela Sapere Aude! Livros, nossa equipe sempre encontra curiosidades que nos fazem refletir sobre a vida e o passado. Esta aqui chamou nossa atenção pelas promessas futuras.

Trata-se de uma lista de pretensões para o ano de 1988 que ainda estaria por começar, mas escritos na forma de agradecimento, como se já tivessem acontecido:

Um emprego na Caixa Econômica Federal / Passar na faculdade / Trocar de carro / Felicidade, amor e saúde e muita, muita paz para meus familiares, amigos e eu / Um namorado que me entenda e seja compreensivo e que me ame muito
A autora do bilhete agradece ainda aos pais, antepassados, ao céu e à terra pelo ano de 1987.

Ulisses Guimarães
O ano de 1988  foi também o terceiro ano de mandato de José Sarney na Presidência da República e a inflação brasileira estava longe de dar trégua à população, o que pode ter dificultado a ela trocar de carro. Mas era o início de uma nova era para o país, com a promulgação de uma nova Constituição para o Brasil - pela mesma Assembléia Constituinte, presidida por Ulisses Guimarães, que três meses antes havia aprovado o mandato de cinco anos para Sarney. Eram tempos de euforia.

Mas ela deve ter ficado feliz por não ter entrado na Caixa Econômica Federal por indicação, antes de 1988, ano em que o concurso público tornou-se obrigatório para o provimento dos cargos públicos no Brasil. Recentemente, a Seção Especializada em Dissídios Individuais I, do Tribunal Superior do Trabalho, julgou nula a contratação de empregado sem concurso público pela Caixa Econômica Federal antes da Constituição de 1988, que instituiu a exigência de concurso para o serviço público. A decisão teve como base o Decreto-lei 759 de 1969, que já determinava a seleção pública para a admissão de pessoal da Caixa. Sorte da autora, caso tenha passado nos concursos públicos que o banco estatal passou a realizar quase que anualmente desde então.

Sobre arrumar um novo namorado, compreensivo e amoroso, esperamos que a autora do bilhete tenha lido um dos grandes best sellers de 1988: "O Relacionamento Amoroso - Segredos e Mistérios da Intimidade Sexual", de Masters & Johnson.

Não sabemos se a autora do bilhete gostava de cinema, mas naquele ano viu-se a polêmica em torno de "A Última Tentação de Cristo", mas em um ano de ótimas produções adaptadas de grandes obras literárias como "Ligações Perigosas" e "A Insustentavel leveza do Ser", o grande premiado do Oscar foi o hoje quase esquecido "Rain Man", menos querido aos corações dos cinéfilos que as duas grandes comédias do ano: "Os Fantasmas se divertem" e "Um Peixe chamado Wanda". Talvez ela tenha preferido rir no conforto do sofá da sala com a estreia, na Rede Globo de Televisão, do "TV Pirata".

Uma nota triste marcou o fim do ano de 1988 no Brasil: o assassinato do ativista político Chico Mendes em Xapuri, no Acre - um fato que talvez tenha repercutido pouco na vida da autora do bilhete, mas que nos foge ao debate por não termos em mãos seus votos para 1989.




terça-feira, 21 de maio de 2013

Com a palavra... ROBERTO BOLAÑO

Me comovem os leitores verdadeiros, os que ainda se atrevem a ler o Dicionário Filosófico de Voltaire, que é uma das obras mais amenas e modernas que conheço. Me comovem os jovens de ferro que leem Cortázar e Parra, tal como eu os li e como pretendo seguir os lendo. Me comovem os jovens que dormem com um livro debaixo da cabeça. Um livro é a melhor almofada que existe.

- Roberto Bolaño, escritor chileno, em sua última entrevista antes de falecer, em 2003, concedida à repórter Monica Maristain, da revista Playboy México. Foi autor, entre outros, de Os Detetives Selvagens e 2666. Foi apontado, ainda em vida, como um dos mais promissores autores latino-americanos. Radicado na Espanha, morreu aos cinquenta anos.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Meu livro preferido é...A TORRE NEGRA



O PISTOLEIRO (Objetiva)

Ele não desejava ser nada mais do que era e, assim sendo, se tornou enorme. É essa a minha impressão de Stephen King, com todas as suas mais de 50 publicações (e subindo). Se marcou como escritor de gênero, o horror, mas produziu diversas obras cujo lugar não é na escuridão debaixo da cama ou nos mistérios dentro do armário. Temos excelentes livros (e adaptações) que fogem ao estilo base de King, como Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank (que deu origem ao filme Um Sonho de Liberdade, primeiro lugar no top 250 do IMDB), O Corpo (que originou o clássico da nossa adolescência, o gerador de nostalgia Conta Comigo) e a saga que me fez começar esse blá blá blá todo, A Torre Negra.

Antes de dizer porque diabos eu tive que estragar tudo escolhendo oito livros ao invés de um como meu preferido, tenho que salientar que além de ter escrito minha saga favorita, Stephen King também é meu autor favorito. Ele não é e nem tem pretensão de ser um clássico, ele mesmo classifica a literatura dele (erroneamente, ao meu ver) como o Big Mac da literatura. Algo que devoramos por prazer, e não porque vai nos preencher com os nutrientes que necessitamos no dia a dia. Algo que até os nutricionistas acabam devorando com intensidade e prazer culposo. Contudo, não foi só pela versatilidade, simplicidade e domínio da escrita que King me ganhou. Ele é um autor que tenta ao máximo estar próximo de seus leitores. Essa proximidade com alguém que ganha a vida escrevendo, essa sinceridade que transborda nos prefácios e posfácios em quase todos os seus livros, foi uma das milhares de coisas que me incentivaram a ser um escritor. A possibilidade de estar próximo aos meus leitores, mesmo não estando.

E foi em um desses prefácios, intitulado “Sobre ter 19 anos (e algumas outras coisas)”, lido quando eu tinha 19 anos, que me identifiquei e me encontrei com meu patrono literário. Nesse texto ele disserta sobre como tudo é grandioso e precoce quando você tem essa idade, sobre como ele sempre quis criar algo grande, uma saga, como O Senhor dos Anéis. Ele diz com todas as palavras que A Torre Negra, assim como diversos grandes romances da sua geração, tiveram suas raízes na saga de Tolkien. O texto segue contando como, aos 19 anos, King demorou a reagir, literariamente, ao fervor que sentiu após ler a coleção de Tolkien e que outra inspiração primordial foi o poema “Childe Roland to the Dark Tower Came”, de Robert Browning. Ele explica de onde vieram as outras referências da sua própria saga e como desenvolveu esses conceitos.

Entender a origem de uma história, quando se está começando a lê-la, é parte integrante de envolver-se com ela. E é impossível não se envolver com a história de Roland Deschain, um cowboy solitário em uma terra árida, seca e sem vida. É impossível não querer seguir para a próxima frase ao ler “O homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás”. Essa frase, por si, resume a incrível história que se desenrola em oito livros, que crescem em tamanho de páginas, personagens, trama e qualidade literária. Porque não é só o crescimento de Roland que acompanhamos em A Torre Negra, como personagem, mas também o de King, como escritor. Apesar de todas as revisões posteriores, em O Pistoleiro, o primeiro volume da saga, ainda pode-se sentir as referências, sonhos e pretensões de um jovem escritor de 19 anos. E, considerando que o oitavo volume foi terminado em 2012, podemos até hoje sentir na saga os sonhos, pretensões e referências de um escritor em constante crescimento, agora com 65 anos. 

Não é segredo que King também costuma criar histórias que tenham origem em fatos de sua vida. O Iluminado é uma tentativa de trabalhar seu período como alcóolatra, assim como O Corpo pode ter sido originado em sua experiência infantil de presenciar, com sua mãe, um suicida esparramado na calçada. Em A Torre Negra percebemos diversas personalidades que podem ou não advir de King como autor e como pessoa. Pelo sexto livro compreendemos a importância que a saga tem e teve na vida do autor e em como ele é envolvido com Roland e companhia. Para King, a história de Roland perseguindo o homem de preto e a Torre Negra é como seu feixe de luz, como seu caminho de tijolos amarelos. 

Eu posso passar horas escrevendo sobre os motivos de A Torre Negra me envolver tanto, da capacidade de King de apresentar um personagem egoísta e odioso no primeiro livro à sua habilidade em fazer com que você queira seguir lendo a história desse personagem. Do universo infinito que ele apresenta durante a narrativa às referências aos outros livros que não estão diretamente ligados à saga (como a presença do Padre Callahan, surgindo no quinto volume da Torre Negra, que tem sua origem em A Hora do Vampiro). Entretanto, acho melhor finalizar dizendo que além da grandiosidade da obra (em constante crescimento, já que King disse que almeja criar a maior saga da história das sagas, e que partes não contadas da narrativa estão sendo desenvolvidas em HQs), o que me faz escolher ela como minha preferida é a presença do meu autor preferido em toda ela. Stephen King nos leva pelos mundos de sua imaginação, por personagens carismáticos, profundos e envolventes, e prova que pode ser um autor de terror, mas a obra de sua vida é uma saga de aventura western.

Se você só conhece King por suas obras de horror, se você não gosta de King por preconceito contra a “baixa literatura” ou se você nunca leu King, mas adora grandes sagas de aventura e é fã do Clint Eastwood, recomendo que compre O Pistoleiro, sente e deixe-se levar pelos passos de Roland Deschain através do Mundo Médio, atrás do homem de preto e da inalcançável Torre Negra.

Lucas Rodrigues é publicitário por formação, escritor por pretensão e leitor por dileção. O que mais aprecia na Sapere Aude! Livros é a magia que o envolve quando está cercado pelos livros de todos os tipos, cores e autores que lá residem.