quinta-feira, 27 de junho de 2013

O ex-negro e a construção da identidade

Um homem que decide esconder a sua verdadeira identidade após presenciar a mais terrível cena que seus olhos já haviam visto. História polêmica, contada em uma trama repleta de reviravoltas e provocativas discussões sobre a questão racial, Autobiografia de um Ex-Negro é obra canônica e marco da chamada literatura afro-americana. 
Em uma época na qual a literatura fechava as portas para autores negros, o romance é apresentado como uma autobiografia de um homem de pele branca, mas filho de pai branco e mãe negra; transitando nesses dois mundos em que se dividia a sociedade norte-americana, o protagonista inominado conduz o leitor a uma viagem pela experiência de ser negro nos Estados Unidos - da infância pobre na Geórgia à descoberta do racismo em Connecticut, da segregação  do Sul à hipocrisia racial do Norte, da auto-segregação dos negros nova-iorquinos à separação social entre os próprios negros de Boston e Washington, do glamour dos salões europeus às raízes da cultura negra sulista. Conduzido pela música - o protagonista rompe o destino de pobreza e preconceito por conta de seu talento musical -, o leitor acompanha ao som do ragtime, dos Negro Spirituals e do nascente jazz as peripécias de um homem em busca de sua identidade em um universo de expectativas limitadas e práticas cruéis contra aqueles que ousavam desafiá-las. 

Cercado de controvérsia, por expor ambos os lados da questão racial de forma contundente, o livro angaria fãs fervorosos em todo o mundo desde o seu lançamento. Mas foi de forma anônima que James Weldon Johnson publicou, em 1912, essa que foi sua única obra em prosa ficcional, The Autobiography of an Ex-Colored Man – lançada no Brasil com o título Autobiografia de um Ex-Negro. Editado pela pequena casa nova-iorquina Sherman, French and Company, o livro chegou às livrarias em uma época na qual ainda havia poucos escritores afro-americanos publicados. Para Johnson, o anonimato serviria para dar ao pequeno volume ares de realidade e concentrar o foco da atenção dos leitores na grande sátira à qual se propunha o livro, já expressa em seu provocativo título. Contudo, a recepção daquela primeira edição do livro foi pouco calorosa, e a ausência de um autor declarado pode ter contribuído para que a obra passasse quase despercebida pela década de 1910. Contudo, o livro ganhou notoriedade apenas quando foi republicado em 1927 pela Alfred A. Knopf, uma casa editorial conhecida por publicar outros grandes autores do movimento cultural dos anos 1920 conhecido por Harlem Reinassance – e, dessa feita, com os devidos créditos de autoria dados a Johnson. 
JOHNSON, J. W.
Autobiografia de um Ex-Negro.
(8INVERSO)
Ainda que seja uma obra de ficção – apesar do título, trata-se de um romance, e não de uma autobiografia –, Johnson baseou-se em pessoas que conheceu e em lugares e situações vividas por ele mesmo, em um exemplo perfeito de roman à clef. Para a professora Heather Russel Andrade, catedrática em Língua Inglesa e Estudos Afro-americanos da Florida International University, é justamente o caráter confessional dado por Johnson à narrativa que torna ainda mais importante o papel desse romance como primeiro livro de ficção escrito por um afro-americano. “A narrativa mistura gêneros”, diz Andrade, “e da mesma forma que seu narrador é racialmente híbrido, o próprio texto é uma espécie de mestiçagem narrativa”.
Desde a sua primeira edição, contudo, o livro tem causado discussões apaixonadas, sobretudo por retratar um narrador-protagonista cuja escolha final é o passing, tão condenado pelos afro-americanos. Johnson apresenta ao leitor um anti-herói negro – um homem que escolhe renunciar à sua ascendência africana para melhor conviver na sociedade estadunidense. Nesse sentido, o autor também vira as costas para uma tradição de autobiografias de afro-americanos que lhe antecederam, desde a pioneira Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave – um relato comovido de um ex-escravo que foge do cativeiro para tornar-se um dos maiores ativistas dos Direitos Civis no final do século XIX – aos romances autobiográficos de Booker T. Washington e W. E. B. DuBois.

A narrativa de Johnson é também híbrida ao usar diferentes camadas de discurso: há a narração linear da vida do protagonista, da infância como negro à fase adulta, como branco; a partir das peripécias da vida desse negro cuja “alvura [dos] dentes, a beleza [da] boca, o tamanho e o escuro profundo [dos] olhos, e [...] os longos cílios [...] eram capazes de produzir um efeito estranhamente fascinante”, surgem também o discurso filosófico e o político, nos quais se mesclam o pensamento do próprio Johnson, refletido em textos não-ficcionais posteriores, e as reflexões possíveis para um narrador que tenta justificar suas escolhas.

Em Along This Way (1933), a verdadeira autobiografia de James Weldon Johnson, o autor afirma ter escrito o livro com a clara intenção de ser irônico, e que “quando [escolheu] o título, [o fez] sem a menor dúvida de que seu significado estaria claro para todos”. Mas seu Autobiografia de um Ex-Negro, que hoje pode ser lido como um estudo sociológico da vida do negro norte-americano dos anos pós-Guerra de Secessão, foi um ato de ousadia em um período no qual as leis discriminatórias do Jim Crow ainda floresciam em boa parte do país. Até então, “no romance afro-americano”, diz Johnson, “o protagonista quase sempre tinha que fazer uma escolha entre seu interesse próprio e o autossacrifício em nome de erguer sua raça; geralmente, a escolha era pela segunda opção”. Seu protagonista, contudo, escolhe o interesse próprio: bem-estar pessoal e financeiro ao invés de recompensas existenciais relacionadas à ascensão do negro na sociedade. Muitos críticos viram nisso um desserviço de Johnson em favor de uma desagregação dos movimentos de unificação dos negros. Ainda que a condição final do protagonista fosse condenável para ambos os lados da “questão racial”, a rica narrativa de Johnson revela pouco a pouco as razões que conduziram esse homem à sua escolha. Seu efeito é criar nos leitores, se não o sentimento de perdão, ao menos certa empatia por tal gesto – e nisso se revela o escritor genial que era Johnson, cuja obra poética e os ensaios político-filosóficos afastariam da prosa ficcional. Como afirma o poeta e crítico literário David Burn, a respeito do romance de Johnson, “conhecendo hoje os múltiplos obstáculos superados pela comunidade negra, é difícil aceitar a premissa de que seja muito natural casar-se com alguém de pele mais clara para avançar um posto na sociedade; ao mesmo tempo, é também difícil condenar o desejo de viver uma vida relativamente feliz, e certamente mais segura, como um homem branco”.
 
James Weldon Johnson
É importante recordar, contudo, que o anonimato de Johnson também serviu a outra intenção: proteger o próprio autor em um momento da vida americana no qual um escritor afro-americano disposto a retratar personagens negros estava sujeito aos aplausos e apupos apaixonados de toda uma parcela da população ávida por se reconhecer na literatura de seu tempo. Diante de tantas representações caricaturais e depreciativas do negro nas artes – muitas delas citadas pelo autor em seu romance –, corria-se sempre o risco de ter sua obra mal-interpretada – o que, aliás, aconteceria com o romance de Johnson ao longo do século XX.
 
A classificação de Autobiografia de um Ex-Negro como um romance, por conta de seu conteúdo ficcional, leva o leitor a um estranhamento por conta das expectativas que o gênero carrega – e são, em parte, frustradas pela forma de autobiografia escolhida pelo autor. Mas é essa mesma escolha de Johnson que aproxima o livro de outras tantas narrativas épicas – reconhecido, aqui, o exagero de chamar de epopeia a narrativa que acompanha os caminhos trilhados por um mestiço de pele clara em busca de um modo de vida estável em meio à questão racial. Se é difícil encontrar paralelos entre essa obra e os poemas homéricos – apenas para citar as epopeias formadoras da literatura ocidental –, o mesmo não se pode dizer do mundo que motivou seu surgimento: a questão racial nos Estados Unidos do final do século XIX e início do século XX, período em que se passa o romance, tornava aquele mundo quase tão hierarquizado e fatalista quanto o mundo grego que viu nascer a Odisseia. E quem de nós poderá dizer que um jovem negro buscando seu espaço na sociedade dos anos seguintes à abolição da escravatura nos Estados Unidos não vivia perigos e atribulações tão terríveis e assustadoras quanto aquelas de um Ulisses?

A Autobiografia de um Ex-Negro de Johnson ocupa hoje um lugar de destaque no cânone literário afro-americano, em um país no qual as letras e artes ainda refletem, mesmo que sutilmente, o grau de separação étnica subsistente na sociedade. Contudo, é um livro que merece ser lido e apreciado por conseguir transformar o drama pessoal de seu protagonista em uma história de interesse universal, cuja identificação e atualidade não se perderam quase cem anos após sua primeira edição.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Quinn e a era das incertezas


Paul Auster
Paul Auster
Um engano telefônico no meio da noite renderia a maioria das pessoas, na melhor das hipóteses, apenas um leve desconforto de quem é acordado de um sono tranqüilo para nada em especial. Para o escritor estadunidense Paul Auster, contudo, uma voz desconhecida que, por dois dias seguidos, ligou para sua casa em busca de uma agência de detetives deu-lhe o mote para City of Glass, uma das três novelas que compõem sua The New York Trilogy. Nessa obra de Auster, Quinn, um escritor que decidira se afastar do convívio dos amigos após uma tragédia familiar, recebe um telefonema de uma pessoa que procura um detetive de nome Paul Auster, para que ele solucione um caso de vida ou morte. Quinn, que nos últimos tempos ganhava a vida escrevendo anonimamente livros policiais, decide então, depois de três noites sucessivas de insistência de seu interlocutor, responder afirmativamente à solicitação da pessoa que procura o tal detetive Auster com tamanha urgência e aceita encontrar-se com ela para ajudá-la em seu misterioso caso.

O telefonema que atende, assumindo a identidade de outro em busca de aventuras que sua vida de ermitão urbano não lhe proporciona, funciona em City of Glass como o erro trágico de Quinn. É a partir desse sim impulsivo que o escritor é lançado cada vez mais em um mundo de ficção e afasta-se perigosamente da realidade, até a decadência absoluta.

Tudo em City of Glass funciona como em um enorme jogo de espelhos – em inglês, a palavra primitiva para espelho era looking glass, uma ilação que o título original sugere e que a tradução para o português ("Cidade de Vidro") não pode conter integralmente. Quinn esconde-se por detrás de um pseudônimo para escrever suas histórias de detetive, William Wilson – por sua vez, nome de um personagem de Edgar Allan Poe em um conto repleto de dubiedades, no qual o protagonista se confronta com um duplo cuja única função parece ser a de pontuar seus defeitos, a de ser sua paródia, sua consciência externalizada. Contudo, Quinn parece inspirar-se em sua própria criação, Max Work, o personagem de seus livros, no qual projeta o que ambiciona ser e nunca foi. Por essa vontade oculta em sua literatura, Quinn lança-se à aventura de ser Paul Auster – nome do autor de City of Glass, um artifício em nada ególatra por parte do escritor , antes um estratagema para incorporar o leitor ao clima de ambigüidades e incertezas da novela.
 

AUSTER, Paul.
A Trilogia de Nova York.
(Cia. das Letras)
Curiosamente, City of Glass é uma história policial que usa dos estratagemas comuns ao gênero, mas ao mesmo tempo os desafia ao propor um caso que o protagonista não consegue solucionar, tampouco dele fugir. É na tentativa de estabelecer a teia de significações que gira em torno da história dos Stillman que Quinn caminha para sua derrocada pessoal. A relação dos Stillman, pai e filho, é sugerida magistralmente pelo autor no próprio nome de família : Peter Stillman Senior prendera o filho, de mesmo nome, por nove anos em um quarto escuro, sem contato com o mundo exterior, no intuito de comprovar suas teses acadêmicas de um retorno do homem aos estados primitivos de pureza. Ao adentrar nessa história de crueldade paterna, Quinn é levado a revisitar seus próprios fantasmas em relação à paternidade que um dia vivera em outra vida, anterior ao seu isolamento.

É, aliás, a incapacidade de Quinn de sentir-se parte do mundo real que o fizera tornar-se escritor de romances policiais e, posteriormente, o protagonista de uma história que remete à ficção em que encontrava alento nos últimos tempos. Contudo, o caso real vivido por Quinn/Auster não encontra uma solução, antes denota a instabilidade do mundo e as incertezas do ser, as máscaras diversas que o homem contemporâneo é levado a assumir para viver nesse universo de inseguranças e de frágeis verdades.

Como gênero, o romance policial é a exaltação do racional, que desvenda os mistérios por meio da análise do mundo que nos cerca e de sua ordenação lógica. É buscando as rupturas nessa organização do espaço e do tempo que o detetive-protagonista revela o crime em suas razões e o criminoso em seus atos – e por isso as dimensões espacial e temporal são sempre explicitadas em tais histórias. O que Paul Auster propõe em City of Glass, contudo, é uma inovação no gênero que é plenamente coerente com os novos tempos do homem: de que forma desvelar o oculto por meio do racional quando a ordem temporal e espacial são, como as identidades do indivíduo, aparentes e mutáveis, imprecisas e frágeis diante de qualquer tentativa de categorização?


*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.













Clube de Leitores é destaque

Na edição de terça-feira, 18 de junho de 2013, do Segundo Caderno do jornal ZERO HORA, o Clube de Leitores da Sapere Aude! Livros foi recordado como um dos clubes do livro recentemente iniciados em livrarias de Porto Alegre. A fotografia em destaque mostra o mais recente encontro, realizado em junho sobre as obras de Moacyr Scliar e Yann Martel.

O Clube de Leitores é uma atividade gratuita e aberta à comunidade mediante inscrição prévia pelo e-mail: info@sapereaudelivros.com.br. O próximo encontro ocorrerá no dia 17 de julho de 2013, às 19h30, tendo como livros debatidos o "Inferno", de Dan Brown, e a "Divina Comédia", de Dante Alighieri.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Meu livro preferido é... CEM ANOS DE SOLIDÃO

MARQUEZ, Gabriel Garcia.
Cem anos de solidão.
(Ed. Record)
"Pablo Neruda, o grande poeta chileno, chamou Cem Anos de Solidão de 'a grande revelação do espanhol desde Cervantes e o seu Quixote. Concordo com ele. Macondo é, para mim, o lugar onde nasceu a América Latina... Contra os crimes invisíveis, contra os criminosos anônimos, Garcia Marquez levanta, em nosso nome, um verbo e um lugar. Batiza, como o primeiro Buendía, como Alejo Carpentier, todas as coisas de um continente sem nome. E cria um lugar. Lugar do mito: Macondo."

- Carlos Fuentes foi um romancista e ensaísta mexicano. Falecido em maio de 2012, recebeu em vida o Prêmio Príncipe das Astúrias e o Prêmio Miguel de Cervantes, as duas maiores distinções aos escritores de língua espanhola. Dentre sua vasta produção, a novela Aura e o romance Gringo Viejo, adaptado para o cinema, estão entre os mais traduzidos.  

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Tristessa e a decadência entorpecida


Jack Keuroac
A obra literária de Jack Kerouac (1922-1969) foi a mais representativa da chamada geração beat – um movimento que começou a partir do encontro do escritor estadunidense de origem franco-canadense com outros autores como William S. Burroughs, Allen Ginsberg e Neal Cassady em Nova Iorque, nos entornos da Universidade de Columbia, nos idos dos anos 1940. Kerouac, que cunhou o termo pelo qual aquele grupo de escritores seria conhecido, forneceu o caminho literário pelo qual muitos dos novos escritores que se somariam ao movimento iriam seguir: o da “prosa espontânea”, pouco convencional, com que Kerouac redefiniu o que já se conhecia em narratologia por “fluxo de consciência”.

A prosa espontânea de Jack Kerouac era fruto de sua forma peculiar de escrita, que consistia em redigir de forma ininterrupta, sem a preocupação de interromper ou organizar o fluxo de idéias pelo uso de pontuação ou a divisão em parágrafos. Tal maneira inovadora de escrever ficção atendia à filosofia da geração beat: no artigo This is the Beat Generation, publicado no The New York Times em novembro de 1952, John Clellon Holmes – o primeiro a usar o termo beat para se referir àquele grupo literário – definiu assim o ideário do movimento, os sentimentos que representavam seus adeptos:

“...the feeling of having been used, of being raw. It involves a sort of nakedness of mind, and, ultimately, of soul; a feeling of being reduced to the bedrock of consciousness. In short, it means being undramatically pushed up against the wall of oneself. A man is beat whenever he goes for broke and wagers the sum of his resources on a single number; and the young generation has done that continually from early youth. ”
 


“...o sentimento de ter sido usado, de ser cru. Envolve uma espécie de nudez da mente, e, em última análise, da alma; um sentimento de ser reduzido aos alicerces da consciência. Em resumo, significa ser empurrado contra a parede de si mesmo, sem drama. Um homem é beat sempre que está falido e aposta o que lhe restou de seus recursos em um único número; e a nova geração tem feito isso continuamente desde a mais tenra idade.” (tradução nossa)

Para tal geração, viver em sua plenitude significava experimentar, lançar-se à prova, arriscar-se. Tal filosofia de vida está perfeitamente retratada na obra mais conhecida de Kerouac, On the Road, na qual relata ficcionalmente sua trajetória de sete anos em viagens pela conhecida rota 66, que cruza o território norte-americano de Chicago a San Francisco, e também em uma de suas mais apreciadas novelas, Tristessa. Publicada em 1960, esta pequena obra narra a convivência de Jack, um escritor estadunidense que se apaixona por uma prostituta mexicana com quem convive na Cidade do México, entre viciados e traficantes, entre a pobreza financeira e a decadência moral.
 

'Tristessa', em edição brasileira da LP&M
KEUROAC, Jack.
Tristessa.
(Ed. L&PM)
Na narrativa de Kerouac em Tristessa, o tempo e o espaço são imprecisos. A descrição dos locais freqüentados por Jack, por exemplo, são feitas a partir de suas impressões pessoais e dos episódios de seu passado que aqueles espaços sugerem – raramente pelas características únicas que eles poderiam apresentar. O tempo – apesar da divisão da obra em dois momentos explicitados pelo título dado à segunda parte da novela, Um ano mais tarde... – também é retratado com ambigüidades, preenchido por analepses que levam a narrativa para outros momentos da história do protagonista cuja importância na trama é questionável, mas que corroboram a impressão de que se está a acompanhar o fluxo de consciência de um poeta decadente e mergulhado no submundo das drogas. Tais dubiedades lançadas ao leitor dão o tom do próprio estado de alma do protagonista, que se diz constantemente ébrio pelo uso do álcool e dos entorpecentes que circulam livremente naquele meio. É a escrita de Kerouac, com sua não-linearidade de pensamento, suas deformações e lapsos, que garante ao protagonista – cujas referências autobiográficas são inúmeras – sua verossimilhança.
 
As idéias da geração beat, pela própria proximidade temporal com o existencialismo, foi muitas vezes relacionada com o ideário daquela escola filosófica francesa, cuja principal bandeira é a liberdade do indivíduo como regente único dos seus atos e destino. De certa forma, o pensamento dos beat, fortemente influenciado pelas impressões causadas pela nova sociedade que emergia do pós-guerra, aproxima-se das idéias sartreanas ao privilegiar o individualismo e a experimentação, mas sua marca mais representativa era a constatação dos homens como seres em desmantelamento e a necessidade de estabelecer, a partir de tal verdade, a fraternidade e os laços de amizade pelos quais eles deveriam ajudar-se mutuamente para enfrentar a degradação inevitável das relações humanas. É com esse olhar de empatia que Jack, o protagonista de Tristessa, acompanha a derrocada final da prostituta por quem se apaixonara, mas que não consegue salvar por conta do peso de sua própria decadência.
 
*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dentro do livro, um mundo de livros


Esta semana, a equipe da Sapere Aude! Livros encontrou em um dos exemplares antigos negociados na loja um brinde da IX Bienal Internacional do Livro de São Paulo.

Realizada em 1986, aquela bienal ainda aconteceu no edifício da Bienal de Arte de São Paulo, onde acontecia desde que a Câmara Brasileira do Livro (CBL) organizou, juntamente com o Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1963, um evento ao qual chamaram Bienal Internacional do Livro e das Artes Gráficas. Essa bienal era herdeira direta da Feira Popular do Livro, um evento anual que a CBL montou pela primeira vez em 1951 aos moldes das feiras do livro da Europa. Mas a Bienal do Livro como a conhecemos hoje ganhou o nome definitivo em 1970, quando a CBL assumiu sozinha a realização do evento. Hoje, a Bienal do Livro de São Paulo é uma das melhores do mundo, com um volume imenso de títulos comercializados a cada edição - com livros para todos os gostos e de todas as partes do mundo. 

A mensagem do cartão-brinde também nos faz pensar... O livro é mesmo um bom companheiro para todas as horas? Sem dúvida que sim, e não importa o número de horas que você precise da companhia deles. Se você precisar de companhia para uma longa jornada, o maior romance do mundo pode ajudar - trata-se de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, em sete volumes que totalizam aproximadamente um milhão e duzentas mil palavras.

 

terça-feira, 11 de junho de 2013

Com a palavra... MIA COUTO

Mia Couto
"Um escritor não escreve por causa de prêmios, não fica mais ou menos escritor por ganhar. Há muito bom escritor que na sua vida não ganhou nenhum prêmio, desde logo o próprio Camões que teve uma vida infeliz, desgraçada, morreu pobre, pensando que sua obra era desvalorizada. Não muda nada. Eu fico muito feliz. Isso tenho que confessar, é uma grande felicidade. Mas não altera em relação às grandes coisas, à razão porque eu escrevo porque que sou feliz, ao empenho que tenho em conciver com meus amigos, com gente que eu gosto. Não muda nada."

- Mia Couto é um escritor moçambicano, um dos mais prestigiados escritores de língua portuguesa da atualidade. Ontem, 10 de junho de 2013, recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra, mais alto galardão das Letras Lusófonas. Mas o autor está longe de encerrar sua carreira - no momento, trabalha em seu trigésimo-primeiro livro.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Meu livro preferido é... O SENHOR DAS MOSCAS

GOLDING, William.
O Senhor das Moscas.
(Ed. Nova Fronteira)
"Não havia biblioteca na minha cidade, mas no início dos anos 1960 a biblioteca vinha até nós. Uma vez por mês uma van verde estacionava em frente à nossa pequena escola. (...) A motorista-bibliotecária era uma senhora que gostava de crianças quase tanto quanto gostava dos livros, e estava sempre disposta a dar uma sugestão de leitura. Um dia, depois de me ver por vinte minutos puxar livros da prateleira de JOVENS LEITORES e devolvê-los em seguida, ela perguntou que tipo de livro eu procurava. Pensei bem e daí fiz uma pergunta - talvez por acidente, talvez por intervenção divina - que mudou toda a minha vida. 'A senhora tem alguma história sobre como as crianças realmente são?'. Ela pensou e foi até a estante de FICÇÃO PARA ADULTOS, e pegou um livro fino de capa dura. 'Tente este, Stevie', ela disse, 'e se alguém perguntar, diga que você achou sozinho, senão eu posso ter problemas'. O livro era 'O Senhor das Moscas', de William Golding. (...) Eu já tinha lido livros para adultos antes, mas nada que tivesse sido escrito sobre crianças para adultos. Eu não estava preparado para o que eu descobri naquele livro: a perfeita compreensão do tipo de seres que eu e meus amigos éramos aos doze e treze anos (...). Podíamos ser bons? Sim. Podíamos ser gentis? Sim. Mas podíamos nos tornar, em um instante seguinte, pequenos monstros? Sem dúvida. E nos tornávamos. Pelo menos duas vezes ao dia e muito mais frequentemente nas férias de verão, quando éramos deixados ao nosso bel prazer. (...) Ao menos que eu me lembre, esse foi o primeiro livro com mãos - fortes mãos que saíram das páginas e agarraram-me pela garanta. Eu disse para mim mesmo: isso aqui não é entretenimento; é vida-ou-morte."

  - Stephen King é um dos mais prolíficos e bem sucedidos escritores de um gênero que é muito amado mundo afora, ainda que visto com reservas pela academia - o terror e a ficção científica. Vários textos de King foram adaptados para o cinema e televisão. Em 2013, um de seus mais emblemáticos livros, Carrie, a Estranha, ganhará sua terceira versão cinematográfica.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Bernarda Alba e o espaço da mulher


Imagens da montagem musical da Broadway, com Phylicia Rashad no papel principal
 Finalizada exatos trinta dias antes de morrer assassinado, em 19 de agosto de 1936, por forças do governo durante a Guerra Civil Espanhola, La Casa de Bernarda Alba, última peça teatral escrita pelo poeta espanhol Federico García Lorca, teve sua montagem de estréia apenas em 1945, em Buenos Aires, cidade na qual Lorca passara cinco meses em 1933, e só viria a ser encenada na Espanha no ano de 1964. 

A construção central do drama de Lorca – a casa na qual uma família de mulheres solitárias é controlada por uma mãe centralizadora e tirânica – teria sido inspirada por uma família da pequena cidade granadina de Valderrubio, onde os pais do poeta tinham uma propriedade rural e conheceram uma certa Frasquita Alba, mãe de quatro filhas às quais comandava com mão de ferro e um homem de nome Pepe de la Romilla, que teria se casado com a filha mais velha de Frasquita por seu dote e, posteriormente, se envolvido com a mais jovem das irmãs. Dessa história real, Lorca apropriou-se da idéia de uma casa sem homens para compor o tema central de La Casa de Bernarda Alba: o lugar da mulher na sociedade espanhola.

O drama divide-se em três atos, todos situados no interior da casa de Bernarda Alba, mãe de cinco filhas – Angustias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela – que vive com elas e sua mãe senil em um pequeno povoado do interior da Espanha. O primeiro ato inicia-se com um diálogo entre La Poncia, serva mais antiga da casa, e outra mulher que Lorca denomina apenas por Criada. Elas conversam enquanto arrumam a sala de visitas para a chegada dos que acompanharam o cortejo fúnebre do segundo marido de Bernarda Alba, e por intermédio das falas dessas duas personagens é que são apresentadas a personagem-título do drama, descrita como tirana de todos los que la rodean e mãe controladora das cinco hijas feas que lhe restaram com a morte do esposo. Sabe-se também que Angustias, a filha mais velha, é fruto do primeiro casamento de Bernarda Alba e a única detentora de um dote deixado pelo pai, ao contrário das irmãs, que nada herdam do pai recém-falecido. Entram em cena as mulheres vindas do enterro de Antonio Maria Benavides, e Bernarda dá ordens às criadas para que sirvam os homens, que ficaram a conversar do lado de fora da casa. É ela também quem conduz as orações pelo morto e, depois da saída das convidadas, maldiz o falatório que, acredita, será iniciado pelas pessoas daquele povoado assim que passarem pelos umbrais de sua porta. Bernarda anuncia que as mulheres da casa manterão um luto de oito anos, nos quais permanecerão trancadas naquela casa, sem contato com o mundo exterior. Ouvem-se gritos e a Criada surge a contar para Bernarda Alba dos desvarios de Maria Josefa, avó das moças; ela ordena à serviçal que leve sua mãe para o pátio, para que os vizinhos não a ouçam, mas orienta em que lugar específico deve ser mantida a velha senil para que os vizinhos não a vejam. Dando por falta de sua filha Angustias, Bernarda descobre que a moça estava a conversar com um homem no portão de casa e espanca-a; ela opõe-se à idéia de que suas filhas mantenham qualquer relacionamento com os homens. Amélia e Martírio, espelhando as palavras de Bernarda, comentam sobre a história do pai de Adelaida, uma moça do povoado, cujas desilusões que causou às mulheres são aludidas como sinal do terror que é a convivência com os homens. Magdalena, por sua vez, entra em cena para contar às irmãs que Angustias, a mais velha, será pedida em casamento por Pepe el Romano – o que ela atribui apenas ao interesse do jovem rapaz pelo dote da irmã. Adela, a mais nova, apaixonada em segredo pelo pretendente da irmã, lamenta sua sorte. O primeiro ato encerra-se com a aparição de Maria Josefa, a mãe de Bernarda Alba, que expressa em sua loucura a vontade das netas: ¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria!

Phylicia Rashad
No segundo ato, as irmãs encontram-se em uma peça interior da casa, tecendo e bordando o enxoval de Angustias. Conversam sobre a corte de Pepe el Romano à irmã mais velha, e La Poncia faz um contraponto aos comentários de Angustias ao contar sua própria história de como conheceu e casou-se com um marido que pouca alegria lhe trouxera. Adela não está presente e as irmãs preocupam-se com ela; procurada pelas irmãs, Adela surge em cena algo transtornada, e La Poncia diz-lhe em particular que seu mal é cobiçar o noivo de sua irmã. A serva tenta convencer a filha mais nova de Bernarda Alba que seu destino é aguardar que sua irmã venha a falecer para assumir o posto de segunda esposa de Pepe el Romano, e diz que assim o faz para defender a honra da casa em que trabalha há tantos anos. Adela revolta-se com La Poncia e afirma que lutará por seu direito de amar o homem que deseja. As demais irmãs, por sua vez, lamentam seus destinos de mulheres solitárias, quando La Poncia conta-lhes sobre os novos homens que chegaram ao povoado, trabalhadores para a colheita próxima, do qual se ouve o canto distante. Quando saem as irmãs para espiar pelas frestas das janelas os homens que passam na rua, Angustias surge em cena reclamando o desaparecimento de uma fotografia de Pepe el Romano, que estava em seu quarto, presente de seu noivo. Bernarda ordena que La Poncia procure o retrato desaparecido; as suspeitas recaem sobre a mais jovem, Adela, mas a serva encontra-o entre as roupas de dormir de Martírio. Bernarda ameaça espancar a filha, que diz ter sido o ato apenas uma brincadeira inocente que fizera com a irmã, Angustias, mas Adela acusa Martírio de nutrir uma paixão secreta por Pepe el Romano.

As paixões ocultas, a inveja e a hipocrisia começam, então, a serem desmascaradas: Martírio e Adela dizem a Angustias que Pepe el Romano casa-se apenas por interesse em seu dote, e Bernarda ordena, rispidamente, que as filhas se calem. La Poncia, em conversa reservada com a matriarca, diz suspeitar que Martírio escondera o retrato por conta do amor de Enrique Humanes, um rapaz que a cortejou mas que fora rechaçado pela mãe por ser de uma classe social inferior. Bernarda, desgostosa com os comentários da serva, relembra-a que ela está naquela casa por piedade da matriarca, que a acolhera ainda jovem, mesmo sendo La Poncia filha de uma meretriz. 


Sem perceber o perigo do comentário, La Poncia conta que Pepe el Romano esteve até às quatro e meia da madrugada a conversar a noiva, mas diante da negativa de Angustias percebe-se que ele esteve em companhia de outra pessoa da casa. Martírio e Adela conversam em particular e a mais jovem revela que Pepe el Romano está a cortejá-la em segredo. La Poncia traz a notícia de uma jovem da aldeia que engravidara sendo solteira, dera à luz um menino em segredo e que o matara, sendo o crime revelado por acaso do destino; ouve-se o povo nas ruas que clama pelo linchamento da moça; Bernarda e Martírio saem em apoio à morte da pecadora, enquanto Adela desespera-se e clama pela libertação da moça, recordando que ela também corria perigo por seu amor secreto por Pepe. 


O terceiro ato passa-se no pátio interno da casa de Bernarda Alba, onde a matriarca recebe a visita de Prudência e com ela compartilha de uma ceia modesta. A visitante conta a Bernarda Alba de seus desgostos por conta de sua filha, expulsa de casa pelo pai. Angustias e Martírio estão brigadas, e Bernarda insiste que elas façam as pazes ao menos para manter as aparências de um lar em harmonia. A filha mais velha diz desconfiar de Pepe, que lhe avisara que aquela noite não iria à casa por conta de outros compromissos com os pais em outro povoado, e todas retiram-se para dormir. Bernarda e La Poncia conversam sobre as suspeitas da empregada de que uma cosa tan grande estaria a passar na casa; a matriarca rechaça essa idéia, e diz confiar que em suas mãos está o controle total do que se passa ali. La Poncia parece antever a desgraça que se aproxima e comenta com a Criada sobre o envolvimento de Adela e Pepe; a moça aparece no pátio e some logo em seguida, entrando no curral. Maria Josefa, a mãe de Bernarda, surge em cena carregando uma ovelha nos braços e, em sua loucura, fala do poder de Pepe el Romano sobre todas as netas, às quais agoura um destino cruel de solidão. Martírio vai até o curral e chama Adela, que aparece algum tempo depois, recompondo-se; elas brigam por conta do que Adela estaria a fazer com a irmã mais velha, Angustias, ao roubar-lhe o futuro esposo, mas Adela acusa Martírio de também estar apaixonada pelo rapaz, e esta acaba por confessar que o ama. Seguem as duas brigando, pois Martírio diz que irá denunciá-la, e Adela fala de sua intenção de fugir e tornar-se amante de Pepe el Romano. Bernarda aparece no pátio e ameaça surrar Adela; esta toma-lhe o bastão das mãos e quebra-o em duas partes. Com o alvoroço de vozes, as demais mulheres surgem em cena. Adela diz, então, a Angustias que ela, a mais jovem, é a verdadeira mulher de Pepe; Bernarda sai de cena e busca uma escopeta com a qual entra no curral e atira. Martírio mente, dando a entender que a mãe matara Pepe el Romano, que na verdade apenas correra com o disparo. Adela corre para o curral e lá se tranca; Bernarda ordena que Adela abra a porta, mas é La Poncia quem abre o curral e descobre a tragédia: Adela está morta, enforcada. Bernarda, diante da comoção de todas e da notícia trazida pela criada de que os vizinhos já se levantavam para ver o que acontecia naquela casa, ordena que a filha morta seja vestida como si fuera doncela e que as demais filhas mantenham silêncio sobre o que ali se passara.


No decorrer de todo o drama, o espaço assume um papel de relevância na construção da trama, o qual pode ser mensurado pelo detalhamento da descrição de cada ambiente feita pelo autor ao início de cada ato. O primeiro ato acontece na sala de visitas da casa de Bernarda Alba, único ambiente no qual as mulheres de fora da família são recebidas durante as exéquias do esposo da personagem-título. O cômodo é descrito por Lorca como sendo uma habitación blanquísima, de paredes grossas e cortinas claras, denotando extrema limpeza e, ao mesmo tempo, um estado de monotonia e opressão que é quebrado apenas por quadros com paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. Pode-se associar o ambiente ao arcabouço psicológico das personagens: Bernarda Alba, a matriarca, luta pela manutenção das aparências acima de tudo, criando um ambiente de tirania do qual a única fuga possível parece ser a fantasia, o sonho, representados pelas “paisagens inverossímeis” dos quadros descritos pelo autor. As paredes grossas – e o próprio isolamento das janelas que Bernarda Alba tenciona colocar durante os anos todos de luto – são uma proteção contra o mundo exterior, marcado pelo masculino. No decorrer de todo o drama, aliás, o espaço público – o campo, as ruas, as estradas – são associados ao mundo dos homens, cujas únicas mulheres que lhe acessam são as malas mujeres, as que fizeram de sua intimidade, algo público. A casa, opostamente às ruas e à natureza, é o espaço limitador das mulheres, a barreira concreta para que sejam mantidas as convenções sociais e os costumes. Não por acaso, no decorrer dos dois primeiros atos, a comunicação com o meio exterior, o acesso daquelas mulheres ao mundo dos homens, dá-se pelas frestas das janelas, pelas quais elas podem espiar o universo masculino sem dele fazer parte. 

A partir deste primeiro espaço, a sala de visitas, o cômodo mais próximo da rua, a peça interioriza-se a cada ato. O segundo ato é localizado em um cômodo interno e comum, no qual as filhas bordam o enxoval que não usarão; à direita, estão as portas dos quartos de dormir, únicos aposentos nos quais as filhas tem sua privacidade e que representam, assim, os sentimentos e a individualidade de cada uma daquelas mulheres. É também um espaço de memórias, no qual afloram as revelações do passado que permeiam esse segundo ato. O terceiro ato é ainda mais distante das aparências da sala de visitas: trata-se do pátio interno, lugar de acesso restrito às mulheres da casa e às visitas mais íntimas; o pátio, espaço aberto, ao ar livre, onde tudo se mostra às claras, é a parte de trás da casa, que dá entrada para o curral – lugar onde os instintos e as emoções são liberadas e fora de controle. É o local onde as mulheres apresentam-se em sua maior intimidade, vestindo suas roupas de dormir e conversando abertamente sobre seus sentimentos; onde a loucura de Maria Josefa apresenta-se mais explicitada, assim como por suas palavras, os sentimentos das demais mulheres; onde o cerne dos desentendimentos e desencontros entre as irmãs mostra-se por inteiro. 

O espaço fornece ainda elementos para outros grandes antagonismos mostrados no drama de Lorca: o público (representado pela via pública) e o privado (o interior da casa), a norma (o silêncio da casa) e o desejo (a transgressão dos sons dos homens que passam, as batidas fortes do cavalo reprodutor que está no curral no terceiro ato), a realidade (as paredes sólidas e concretas, construídas, segundo Bernarda, para que ni las hierbas se enteren de [su] desolación) e a fantasia (os quadros oníricos da sala de visitas), o campo das emoções humanas (o pátio) e dos instintos primitivos (o curral onde Adela e Pepe encontram-se, o galinheiro onde Adela vai expor seu vestido novo às aves, no primeiro ato). 

O espaço externo, além de representar o mundo masculino, é sempre a fonte dos conflitos no decorrer da trama: na via pública, ocorrem os cantos dos trabalhadores e os gritos de linchamento da jovem que matara o próprio filho recém-nascido; no campo, residem os sonhos de liberdade que fazem com que as mulheres invejem aquelas mujeres malas que os camponeses contratavam para animar-lhes na época da colheita; da via pública, à janela, Pepe el Romano corteja Angustias e seduz Adela; ao ar livre, no pátio aberto – ainda que interior à estrutura da casa –, dão-se as revelações e a liberação dos instintos. 

Ainda que os ambientes exteriores à casa, e que jamais aparecem em cena, sejam a representação do mundo dos homens, o elemento masculino mais forte em cena parece ser, sem dúvida, a própria Bernarda Alba. Ela é quem conduz a família e contém os excessos que, a seu ver, podem depor contra as tradições e as convenções sociais, voltando a curiosidade dos vizinhos e seu falatório contra ela mesma e suas filhas. Bernarda representa a convenção que oprime aquelas mulheres e delimita seu espaço no mundo.

 *Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Dentro do livro, uma cidade de insurgentes

A equipe da Sapere Aude! Livros encontrou recentemente, dentro de um dos livros raros que chegou para venda na loja, um postal antigo da cidade francesa de Gordes que servia como marcador de livros.

Vila fundada por celtas, Gordes é uma cidade localizada nas montanhas de Vaucluse, no vale do Calavon, próxima a Avignon e à região da Côte D'Azur. Ainda se pode ver pela cidade vestígios da ocupação romana, da invasão árabe, do mosteiro beneditino construído ali no século VIII e do castelo erguido no século XI. Mas ao longo da história, Gordes ganhou fama de ser uma cidade de insurgentes por conta de dois episódios: sua oposição ao centralismo francês depois da anexação daquela região ao reino da França, no século XV, e por ter sido importante foco da Resistência durante a Segunda Guerra Mundial. 

Gordes e o vale que a circunda
A pequena cidade também foi moradia, por alguns anos, do pintor Marc Chagall, do ex-presidente francês François Mitterand e do cineasta brasileiro Walter Salles - certamente atraídos pela tranquilidade do lugar e pelas belas vistas da cidade, localizada sobre um morro, para o vale que domina a região.


terça-feira, 4 de junho de 2013

Com a palavra... YANN MARTEL

Yann Martel
"As Aventuras de Pi foi inspirado por duas coisas: pela Índia e por uma resenha desfavorável que eu li há dez anos no The New York Times. Era a resenha de um romance brasileiro feita por Updike. Ele detestou o livro, mas a premissa (um judeu em um bote salva-vidas com uma pantera negra em 1933) deixou-me fascinado. Fui três vezes à Índia, sempre de mochila nas costas, sendo que na segunda vez na intenção de pesquisar para o livro e na terceira, para esclarecer alguns pequenos detalhes. Escolhi a Índia por ser um lugar onde todas as histórias são possíveis. Quanto à comparação com O Velho e o Mar, bem, as pessoas sempre buscam comparações. Eles querem cisas novas, mas somente se estiver de alguma forma conectado com o que é familiar. Precisamos disso em nossas vidas, da mistura do novo e do antigo. Mas é claro que me sinto lisonjeado com a comparação do meu livro com O Velho e o Mar. Hemingway era um grande escritor."

- Yann Martel, autor de As Aventuras de Pi, é um escritor canadense. Apesar de sua língua materna ser o francês, Martel escreve em ingles por considerar que "é a língua na qual (ele) melhor expressa as sutilezas da vida". Seu livro de maior sucesso foi também o que gerou a maior polêmica à época de sua premiação no prestigiado Man-Booker Prize de 2002, ao ser acusado de ter plagiado o livro Max e os Felinos, do gaúcho Moacyr Scliar - que ele cita na entrevista acima sem mencionar o nome do livro nem o autor brasileiro. Um detalhe importante: a resenha do The New York Times não foi assinada por John Updike, e nem era desfavorável ao livro de Scliar...

*Entrevista concedida ao WrittenVoices.com.

Quem avisa, amigo é...

Livros infantis costumam ter algum conteúdo educativo - não que isso seja essencial, mas boa parte da literatura infantil traz também essa característica. Isso leva o leitor a tentar imaginar qual o objetivo do autor do livro acima, da prestigiada série de livros do Dr. Seuss (vejam lá em cima o 'Gatola da Cartola'...) ao escrever a história de um cãozinho que está prestes a ser castrado. O título não podia ser mais direto: é algo como 'Ô, meu, vão cortar tuas bolas fora!'. E que tal o passarinho trazendo a má notícia? Sem dúvida, muito educativo para crianças.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Meu livro preferido é... O MESTRE E A MARGARIDA

BULGÁKOV, Mikhail.
O Mestre e a margarida.
(Ed. Alfaguara)

"O Mestre e a margarida é um dos meus livros preferidos. O romance de Mikhail Bulgakov explora a visita do diabo à cidade ateia de Moscou. O livro foi um presente de Marianne Faithfull, minha namorada entre 1966 e 1970, e serviu de inspiração para a música 'Sympathy for the Devil'."

- Sir Mick Jagger é vocalista da banda de rock Rolling Stones, uma das mais influentes e bem sucedidas da história do rock. É também músico, compositor e ator. Recebeu o título de Cavaleiro da Coroa Britânica em 2003.