sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Você sabe?!?... A Sociedade Petalógica

por Mires Batista Bender



Na segunda metade do século XIX, o jornalista e tipógrafo Francisco de Paula Brito era dono de uma livraria no bairro do Catete, no Rio de Janeiro. Sua livraria, além de vender remédios, chás, fumo de rolo, porcas e parafusos, também era ponto de encontro de intelectuais. 

No ano de 1840, Paula Brito reuniu ali, pela primeira vez, a Sociedade Petalógica. A ideia era promover uma reunião para o estudo da mentira, da lorota, da peta, daí o nome “Petalógica”. Seus membros entendiam que através da profunda observação da mentira poderiam penetrar com mais acuidade a alma humana. Pensavam, também, em prejudicar os mentirosos, fornecendo material para que estes fossem se desmoralizando a cada vez que repetissem, julgando serem verdades, as mentiras ouvidas dos membros da Sociedade. Nota-se que havia um fundo de seriedade encoberto pela proposta jocosa dos encontros. 
De acordo com historiadores, Paula Brito juntou em torno da Petalógica, não só a intelectualidade da época, mas as mais diversas personagens, de distintas classes sociais. Como consequência, sua sociedade promoveu encontros entre a comunidade letrada e a não letrada. A Petalógica reunia representantes do movimento romântico dos anos 1840 aos 1860. Poetas, como Gonçalves dias e Laurindo Rabelo; romancistas, como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida e Teixeira de Souza; compositores, como Francisco Manuel da Silva e artistas como Manuel Araujo Porto Alegre e João Caetano dos Santos. 

Seu sócio mais ilustre foi, sem dúvida, Machado de Assis, que começou a frequentar aos dezesseis anos. Deve-se à Tipografia de Paula Brito a publicação da  primeira produção literária de Machado. Em 1855, foram publicados na Marmota Fluminense, Revista editada pelo livreiro, os seus poemas “Dona Patronilha”, “Ela” e “A palmeira”.  

O cronista Machado de Assis comentou, em 1864, que estava equivocado quem pensasse que a Sociedade era apenas movida pela pilhéria. De acordo com ele, cuidavam muitos que; por ser petalógica, a sociedade nada podia empreender que fosse sério; mas enganaram-se; a Petalógica tinha sempre dois semblantes; um jovial, para as práticas íntimas e familiares; outro sisudo, para os casos que demandassem gravidade. 

Em uma crônica escrita em 3 de janeiro de 1865 e publicada atualmente na página <http://www.cronicas.uerj.br>, Machado de Assis declara: “Este livro é uma recordação, – é a recordação da Petalógica dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito – o café Procópio de certa época, – onde ia toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os simples amadores, amigos e curiosos, – onde se conversava de tudo – desde a retirada de um ministro até a pirueta da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó de peito do Tamberlick até os discursos do marquês de Paraná, verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com o ex-ministro”. 



* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

PRATA DA CASA: Futebolês, por que não?




 Dia de São Pega, sete da matina. Quando cheguei na Borges, dei de cara com a catimba dos motoristas. Toda a Zona Sul estava recebendo um cartão vermelho na hora de se movimentar pela urbe.  Os motoras estavam querendo dar um chocolate nos patrões e fazer um gol relâmpago. Pretendiam matar a jogada rapidamente, e emplacar um aumento de salário. A idéia era ganhar de virada, sem tempo para os patrões cavassem uma falta.
Mas os cartolas das empresas, os reis da firula, não nasceram ontem, não são beques de fazenda...  Além disso, alguns motoristas pipoqueiros deram um cartão vermelho para Sindicato e conseguiam fazer alguns golos contra.
Os motoristas se sentiram na banheira, não sabiam quem seria o craque capaz de fintar a Justiça do Trabalho e a Brigada Militar. Foi então que pediram uma prorrogação para organizar melhor a equipe. Em assembléia a Comissão de Greve, ouviu a Camisa Doze e também os artilheiros. Então a negociação fluiu.
Os cartolas reconheceram que os salários estavam baixos. Fizeram uma proposta: 30% de aumento no vale-refeição. E como prova da boa vontade, reabririam as negociações após a Copa. Um golaço: os patrões ganharam o jogo de virada.
Acordo fechado.

Silvia Clara Agnes

Na seção PRATA DA CASA, publicaremos semanalmente textos escritos pelos alunos das diversas oficinas literárias ministradas na Sapere Aude! Livros. O texto de hoje é de Silvia Clara Agnes, aluna das oficinas de Poesia do professor Diego Petrarca. Quer conhecer mais sobre nossas oficinas literárias? Acesse: http://oficinasliterarias.wordpress.com

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

ENSAIO SOBRE A ROTINA: Novecentos e noventa e nove

por Nurit Gil

- De novo não.
- O que foi?
 - Essa sua mania irritante de apertar o tubo da pasta de dente no meio.
 - Espera, eu sou um marido nota mil, carinhoso, presente, fiel e você vai fazer cena por causa da pasta de dente?
- Nota mil?
- É, nota mil.
- Vamos começar: só sai para jantar se for no mesmo restaurante, novecentos e noventa e nove, não suporta minhas tias, novecentos e noventa e oito, sai para jogar poker com os amigos toda quinta-feira, mesmo que eu esteja de cama, novecentos e noventa e sete...
 - Falando nisso, quando é que você não está de cama?
 - Que?
 - É. Adoro você na cama, desde que não esteja reclamando.
 - Eu tenho enxaqueca, você sempre soube disso.
 - E eu gosto de sentar na mesa quinze do Printz, você sempre soube disso.
 - Sim, e comer aquela maldita mostarda para passar três dias com azia.
 - E te ver três dias bufando ao invés de me preparar uma canja. O que me leva....
 - A que? A que? Quero saber.
 - À sua completa inabilidade na cozinha.
 - Poupe-me de preparar canja e desfiar frango.
 - Poupo-te sim, mas arrozinho com bife grelhado seria o mínimo.
 - Algum dia te enganei? Algum dia disse: "case comigo e sinta-se o rei Momo?"
 - Mas dez anos de lasanha congelada não somam pontos a seu favor.
 - E o que você acha de escutar, há dez anos, em todas as refeições de família: "hoje tem o pavê da mãe? Mas é "pavê" ou "pacomê"?
 - Pelo menos minha mãe prepara pavê para mim.
 - E esfrega na minha cara que soube prender o marido pelo estômago.
 - Agora o problema é minha mãe?
 - Agora?
 - Mamãe não, mamãe não...
 - Você faz isso desde que nos conhecemos,
 - Faço o que?
 - Inverte. Transforma as minhas reclamações em suas,
 - Amor...
 - É verdade, é verdade, não vem dizer que não.
 - Lembra quando nós conhecemos?
 - Não muda de assunto.
 - Aquele mar, aquela praia.
 - Hum.
 - Você deslumbrante num biquini branco.
 - E você galanteador.
 - Pois é.
 - Perfumado.
 - Sempre.
 - Oferecendo-se para passar protetor solar nas minhas costas.
 - Foi meu charme.
 - Eu deveria ter percebido.
 - O que?
 - Quando você apertou o tubo.
 - Por que?
 - Foi no meio.


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Com a palavra... NELSON RODRIGUES

Nelson Rodrigues
"Fui encerrar, na escola de Comunicações e Artes da USP, um curso de Pós-Graduação sobre o meu teatro e depois li os trabalhos dos alunos. Fiquei besta. Nunca vi nada mais profundo, de não se entender uma frase. Quando pensei em fazer uma peça, era o sujeito mais obscuro do Rio de Janeiro. Tinha uma miséria de Raskolnikoff, embora sem intenção homicida. Escrevi A Mulher Sem Pecado em 1939. Só a maturidade me permite confessar que, até fazer Vestido de Noiva. Só tinha lido uma peça: Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Na infância, vi Alda Garrido em burletas de Freire Junior. E isso embora tivesse uma monstruosa leitura literária. Pouca gente no Brasil conhece romance como eu conheço. Como eu tinha problemas econômicos, pensei que se escrevesse uma chanchada ia ganhar dinheiro. Comecei A Mulher Sem Pecado. No meio da primeira página, já era uma peça tenebrosa e foi assim até o fim."

- Nelson Rodrigues foi um dos maiores dramaturgos brasileiros. Recifense, mudou-se para o Rio de Janeiro aos sete anos de idade. Aos treze anos de idade, começou sua carreira jornalística no jornal A Manhã, fundado por seu pai. Sua carreira literária teve início em 1941, com a estreia nos palcos de A Mulher Sem Pecado - e suas obras posteriores, apesar dos problemas com a censura, consagraram-no em vida como um dos grandes nomes do teatro à época. 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Lendo Fantasia: O MABINOGION

V ocê já leu o Mabinogion? Provavelmente não. Esse livro, escrito em galês, foi traduzido pela primeira vez no século XIX. As fontes originais são bem mais antigas: o Livro Branco de Rhydderch (1300-1325) e o Livro Vermelho de Hergest (1375-1425). Algumas das histórias são do século XI. O títulos das fontes já chamam a atenção de um leitor de Fantasia. Não por acaso, J. R. R. Tolkien dá o nome de Livro Vermelho da Marca Ocidental (Red Book of Westmarch) ao livro que Bilbo e Frodo escrevem, e Sam complementa, em O Senhor dos Anéis

Red Book of Hergest - BBC Wales
Livro Vermelho de Hergest (Foto: BBC Wales)
O Mabinogion é um livro de muita influência na Literatura de Fantasia. Ele contém as histórias mais antigas do Rei Artur e do bardo Taliesin (ou Mirddyn, ou Merlin), além de quatro contos celtas bastante antigos (os quatro ramos do Mabinogi). Um dos contos mais interessantes é o de Pwyll, que sai para caçar e encontra a Morte (Arawn). Ultimamente todos os filmes que têm um deus subterrâneo o identificam com o diabo do Cristianismo popular, embora nas suas mitologias originais eles não fossem retratados assim (Hades/Plutão/Arawn). O senhor da Terra dos Mortos não é mau, nem seu reino um inferno. No conto de Mâth, temos uma versão de um deus solar (Lleu Llaw Gyffes), que só pode ser morto com um pé em um caldeirão e outro em um bode. Meu palpite é que isso simboliza a posição do Sol entre Aquário e Capricórnio, ou o solstício de inverno. 
Lleu rises in the form of an eagle. Image from...
Lleu rises in the form of an eagle.
Image from The Mabinogion, Charlotte Guest, 1877.
(Photo credit: Wikipedia)

Apesar de muito interessantes, os contos do Mabinogion contêm longas listas de nomes difíceis de pronunciar e repetições típicas da literatura oral, o que os torna difíceis de ler, mesmo em inglês. A escritora americana Evangeline Walton deu uma forma literária aos contos na Mabinogion Tetralogy. Os quatro livros correspondem aos quatro contos celtas, mas não contemplam as lendas arturianas. Lloyd Alexander, autor das Aventuras de Prydain, inspirou-se livremente no Mabinogion para criar o seu próprio mundo de fantasia. Houve uma tentativa fracassada de transformar seus contos em um desenho da Disney (Taran e o Caldeirão Mágico, 1985). A adaptação foi muito mal feita e o resultado foi péssimo. Mas a influência dos antigos contos celtas do País de Gales continua. Bernard Cornwell tirou das histórias mais antigas de Artur, que estão no Mabinogion, material para a sua versão do mito nas suas Crônicas de Artur (O Rei do Inverno, O Inimigo de Deus e Excalibur). Nas versões do Mabinogion, ainda não existe um Sir Lancelot (ele é francês, lembrem-se), a brutalidade da sociedade medieval é bem mais evidente e não há Santo Graal. O mistério que Peredur (Percival/Parsifal) presencia é, simplesmente, o dever de vingar um parente.

Mabinogion
O Mabinogion (Foto: BBC Wales)
Já as histórias dos quatro ramos do Mabinogi foram aproveitadas por George R. R. Martin nos livros da série Uma Canção de Gelo e Fogo (mais conhecido no Brasil por Guerra dos Tronos, minissérie da HBO). Em uma dessas histórias, o protagonista é o herói Bran, o Abençoado (Bran The Blessed). Bran é um dos sobreviventes de um grande combate entre ingleses e irlandeses no qual os nativos de Eire usam soldados mortos que, depois de jogados em um caldeirão mágico, transformavam-se em guerreiros mortos-vivos. Bran é morto, porém sua cabeça cortada continua viva, falando e banqueteando-se com os companheiros em uma bandeja de prata. Bran Stark, nos livros de Martin, fica aleijado, porém se torna uma espécie de vidente/guru, tal como Bran, o Abençoado. Aliás, os Filhos da Floresta de Martin lembram muito histórias de fontes celtas. Por todas as citações, já dá para perceber a importância do Mabinogion e a influência que esse livro teve nos escritores de Fantasia. O livro está disponível em inglês para baixar no Projeto Gutenberg, em vários formatos.  



 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos, pela qual ministrará, em outubro próximo, o curso ESCREVENDO FANTASIA.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Você Sabe?!?... O QUE É PRECISO PARA SE ESCREVER UM CONTO

por Mires Batista Bender



Certa vez, um jovem aspirante a escritor perguntou a Guy de Maupassant qual a melhor técnica para redigir um conto. O grande contista francês respondeu:
– Basta arranjar um bom começo e um bom final.
– Só isso? Perguntou o principiante – e no meio, o que entra?
Ao que o escritor respondeu: 
–  Bem, aí entra o artista!

Guy de Maupassant
A partir da resposta de Maupassant, talvez seja possível inferir que de todas as características que um conto deve apresentar, sua “alma” está na forma como a história é narrada. A própria trama ou o tema escolhido não teriam o mesmo peso de importância. Sobre esta matéria, aliás, Julio Cortázar, analisando “alguns aspectos do conto”, quase cem anos depois, disse que “não há temas bons nem temas ruins, há somente um tratamento bom ou ruim do tema”.

A arte do conto surgiu antes mesmo do aparecimento dos sistemas de escrita, trazida pelos contadores de histórias populares, em volta do fogo, nas sociedades primitivas. Com o advento do registro escrito dessas histórias, no século XIV, o conto ganhou elaboração estética, mas conservou muitas de suas características primordiais: a concisão, a precisão, a unidade e o efeito singular que deve causar de forma a prender a atenção do leitor. Talvez pelo ambiente noturno e o crepitar do fogo que acompanharam os primeiros contadores, o suspense e o fantástico tenham sido originalmente suas mais marcantes características.

Edgar Allan Poe
O conto literário surge como tal no século XIX quando os irmãos Grimm publicam uma coletânea de narrativas com o título de Contos para crianças e famílias. Em 1842, o conto literário tem em Edgar Allan Poe seu primeiro teórico. Poe lança as bases do conto moderno como o conhecemos hoje. No prefácio para o livro de Hawthorne, Twice-Told Tales, ele desenvolve sua teoria baseada no “Princípio da unidade e efeito”. Poe fala da necessidade de uma leitura curta, concentrada, penetrante e concisa, ao invés de extensa, verbosa e pormenorizada. Para ele, nesse caso como em quase todas as classes de composição é a unidade de efeito – a impressão que o texto pode causar no leitor – o ponto crucial da narrativa. De acordo com sua teoria o conto deve causar um estado de “excitação” ou de exaltação da alma e para alcançar este efeito é imprescindível que possa ser lido com atenção, num curto espaço de tempo. Poe mede a brevidade em termos de tempo de leitura: deve ser uma narrativa breve, que ocupe o leitor entre trinta minutos e duas horas. Ainda segundo o contista norte-americano, um conto bem estruturado possui um clima cuidadosamente premeditado, cada palavra servindo ao desígnio maior de criar naquele que lê uma impressão particular. Deve ser fruto de um trabalho muito bem elaborado visando atingir o efeito que o autor pretenda causar no leitor ao final da história.

Anton Tchekhov
Outro importante teórico, Anton Tchekhov, entende ser o conto produto de “minucioso cálculo” e de um “extremo domínio do autor sobre seus materiais narrativos”. A grande ruptura do modelo de Tchekhov é a quebra da ação em direção ao clímax e a um final privilegiado, conforme preconizou Poe. Em seus contos nada parece acontecer, no entanto é impossível não ser tocado por eles, pois o leitor será dominado pelo estado psicológico das personagens e por manifestações comoventes da condição humana: dor, solidão e angústias, que levarão o leitor a uma segunda história, oculta, a qual virá à superfície ao final da primeira história fazendo parecer que o conto fora construído para contá-la. Esta habilidade de ocultar uma segunda história dentro da primeira é outra importante característica do conto e, de acordo com o que explica Ricardo Píglia em seu estudo “Teses sobre o conto”, esta é a sua tese número um: “um conto sempre conta duas histórias”.

Desde a antiga lição de Maupassant ao jovem principiante, sabe-se que, independente do estilo, do tema ou da trama, fundamental é contar bem as histórias, afinal, quem conta um conto amplia o mundo.



* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Ensaio sobre a rotina: VARAL BEGE

por Nurit Gil



Da janela da área de serviço, conseguia enxergar o que se passava no apartamento dos vizinhos. Era a parte lateral do pequeno edifício e onde encontravam-se os estendedores de roupas do 101 ao 804.

Sabia, por exemplo, que a vizinha do 502 era artista, pelos aventais manchados de tinta. O casal do 404 era metódico, combinavam sempre os pijamas e a roupa de cama. O estendedor na janela do senhor do 704, quase sempre vazia, denunciava que ele devia mandar as roupas para uma lavanderia ou simplesmente, a esta altura da vida, tinha desistido de cheirar a sabão em pó. A vizinha ruiva do 303 - intrigante - lavava apenas lingerie. A família do 201 tinha acabado de aumentar. O rapaz do 703 terminara um relacionamento. O extravagante músico do 803 misturava roupas coloridas às brancas na máquina de lavar. A senhora de meia idade do 202 aumentara consideravelmente o tamanho dos seios. Os recém casados do 401 eram fãs de chantilly. E Ana imaginava se os vizinhos também conseguiam desvendar pequenos detalhes da vida dela analisando seu varal, monótono, coberto de roupas de tom bege.

O curioso, no entanto, é que apesar da intimidade exposta no edifício Saint Tropez, os vizinhos cumprimentavam-se apenas com um aceno de cabeça e no máximo um "Esfriou, né?" ao cruzarem-se nos corredores, no elevador ou na garagem. Sabiam a cor da roupa íntima que o outro usava, detalhes de sua vida privada, de sua situação estomacal, mas não ousavam cruzar a barreira do manual politicamente correto da impessoal vida em cidade grande:

- Olá.

- Boa noite.

- Tchau.

- Até mais.

Então chegou o dia da reunião de condomínio, que ocorria a cada seis meses sempre convocada pelo síndico, o senhor de poucas roupas no varal. Ana desceu de roupa bege e um rabo de cavalo, exatamente como seu varal sugeriria a um vizinho mais atento. Foi lida a pauta do encontro e, após definirem repintar o teto azul do hall, podar o Ficus da entrada e escolher um local apropriado para o carrinho de compras, abriram o espaço para assuntos gerais. O rapaz do 703 começou:

- Temos vizinhos que não respeitam o horário de silêncio...

- Ih começou!

- Sim, comecei. Gosto de dormir cedo.

- Cara, é minha profissão. Pior você, que não recolhe as necessidades de seu cão na calçada.

A senhora dos seios grandes entrou no debate:

- Não critiquem os animais, não critiquem os animais.

- Ah é, minha senhora? E seu papagaio que imita o som de assoar o nariz?

- Imita do vizinho de cima.

- Eu?

- Sim. Poderia ser mais silencioso, não?

- Minhas intimidades não dizem respeito a você.

E os ânimos começaram a se exaltar. Levantaram-se, xingaram gerações anteriores e futuras, apontaram o dedo para imperfeições diversas. Ana permanecia observando. Até que pisaram em seu calo:

- Culpa da vizinha bege!

- Eu?

- Sim. Sua cantoria no banheiro é absolutamente irritante.

- Irritante é olhar suas calcinhas minúsculas e multicoloridas dia após dia!

- Invejosa!

- Exibida!

No instante seguinte, estavam rolando pelo chão, puxando os cabelos uma da outra. A vizinha da lingerie teve um apoio maciço do público masculino, o que deixou a noiva do 401 visivelmente alterada (provavelmente esta noite não teria chantilly). O síndico pediu a palavra:

- Agradeço a presença de todos, mas já são dez da noite. Assuntos pendentes serão tratados na próxima reunião e assim, dou por encerrado este encontro.

Todos levantaram-se, pegaram seus pertences e saíram porta afora. Dividiram o corredor e o elevador como desconhecidos, com rostos plácidos e seguindo o protocolo politicamente correto da vida em cidade grande, despediram-se:

- Boa noite.

- Tchau.

Ana entrou em seu apartamento e foi direto recolher as roupas do varal. 'Vizinha bege' era demais, a sirigaita do 303 que aguardasse a próxima reunião. E até mais. 

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Com a palavra...CHUCK SAMBUCHINO

Chuck Sambuchino
"Há cinco erros que a maioria dos escritores cometem, e essas são as formas de evitá-los:


1. Pensar que seu livro vende-se por si só.
Tenho cinco livros publicados com a Simon & Schuster e, acredite: Eles não saíram sozinhos da prateleira. Eu cometi o erro de me tornar complacente e pensar que porque eu tinha uma grande editora por trás do meu trabalho eu não precisava atuar muito na promoção dos livros. Um enorme erro.Vi minha amiga escritora Becky Wicks trabalhar feito uma condenada para promover seu Before He Was Famous e em doze horas depois de abertas as vendas na Amazon ela tinha vendido cerca de quinhentas cópias. Ela tinha trabalhado horrores por meses para criar seu público, interagindo pelo Twitter e Facebook e construindo uma base de fãs do zero. Ela arrasou. Tornou-se minha inspiração para fazer o mesmo.

Se você escreveu um livro e colocou-o na Amazon na esperança de que ele se venderia sozinho, então boa sorte. Se você publicou um livro por uma grande editora e espera que eles façam o trabalho de divulgação por você - boa sorte, também. Você precisa agir como se fosse um autor independente - e bem determinado - se quiser vencer no mercado editorial. Isso significa:
  • Gastar várias horas do dia nas redes sociais, interagindo com os fãs e criando empatia (e isso não significa enfiar seu livro goela abaixo dos leitores e, sim, prover conteúdo de interesse);
  • Estudar marketing e divulgação, aprender tudo o que puder sobre isso — agora!
  • Começar pelo menos seis meses antes do livro ser lançado.

2. Pensar que as pessoas se importam com a sua história de vida.
A não ser que você seja uma celebridade classe A ou tenha feito algo realmente extraordinário a ponto de deixar qualquer um de boca aberta, a não ser que haja um forte atrativo, é um erro imaginar que sua história interessa a alguém que esteja além do seu círculo imediato de parentes e amigos.Já perdi a conta do número de conhecidos que se aproximaram de mim dizendo querer minha ajuda por terem uma "grande ideia que querem transformar em um livro". Invariavelmente é sua história de uma luta contra o câncer / divórcio/ viagem ao redor do mundo. Fico sempre surpreso. Se isso é tão importante para você, escreva, mas não espere que vá vender. E eu adoraria estar errado!



 3. Seguir a moda.
Eu cometi o erro de uma vez escrever um livro  — uma distopia juvenil  — porque me disseram que era o que mais queriam na Feira do Livro de Frankfurt.  Era um bom livro, mas quando terminei de escrevê-lo, adivinhem só? Distopias já eram coisa do passado. É claro que você pode desmentir esta dica escrevendo algo realmente interessante e surpreendente, mas é mais provável que isso não aconteça. Minha sugestão? Escreva a história que você quer ler e não busque pelas tendências de momento. Elas vêm e vão.



4. Esperar sucesso imediato com seu romance de estreia. 
Sim, é claro que isso acontece. De vez em quando. Mas é extremamente raro. Eu estou no quinto livro com a Simon & Schuster e não recebi adiantamentos pelos livros que escrevi. Suspiro. E os adiantamentos nem seriam tão altos assim, para começo de conversa. Meu primeiro livro adulto  —  Come Back To Me  — saiu pela Pan Macmillan e foi o primeiro pelo qual recebi adiantamentos bem antes da publicação, e graças à venda dos direitos para tradução. Eu espero que lá pelo décimo livro eu possa estar ganhando royalties de verdade.



5. Esperar que irá abandonar o emprego assim que vender o seu primeiro livro. Os pagamentos feitos pelo mercado editorial estão encolhendo. Meus pagamentos hoje são menores do que sempre foram. De fato, um editora hoje comprará não mais que um livro seu por ano (se você tiver sorte), seu agente ficará com 15% e os impostos, outros 20-30% - e você ficará com bem menos do que tinha pensado que renderia. Eu mesmo deixei meu emprego, comecei a viajar pelo mundo E então decidi me tornar escritor porque eu nunca pesquisei sobre quanto os escritores realmente ganham. Bah. Como eu sobrevivo financeiramente?
– Escrevo para publicidade;
– Comecei a escrever roteiros para cinema e televisão;
– Cedi meus livros para vendas corporativas/brindes empresariais;
– Eu dou aulas e palestras;
– Eu trabalho feito bicho!
Eu tive que usar minha criatividade e imaginação para encontrar outros meios de ganhar dinheiro, em outras palavras. Faça o mesmo."
 
- Chuck Sambuchino é editor e autor publicado, mais conhecido por seu blog Guide to Literary Agents, um dos mais famosos blogs sobre o mercado editorial. O texto foi originalmente publicado no Writer's Digest (http://www.writersdigest.com/editor-blogs/guide-to-literary-agents/).