quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: IDADE: VIDE BULA

por Nurit Gil

Vinte anos. Pode usar mini saia. Decote descuidado é charme. Pode opinar, mas não espere ser levada a sério. Flerte à vontade. Não ceda à primeira cantada. E sem mãos no primeiro encontro. Pode gostar de vampiros. Pode viajar com o namorado (mas deixe o celular ligado). Pode dirigir à noite. Pode ficar doente. Pode beber, você já é maior de idade.

Trinta e cinco anos. Mini saia nesta idade? Amamentar em público é polêmico. Pode opinar. O livro da Encantadora de Bebês é bárbaro. Cinco malas para passar o final de semana fora. Tem café descafeinado? Não pode ficar doente (nem dá tempo). Beber é mau exemplo, tem suquinho na geladeira.

Cinquenta anos. Mini saia é falta de simancol. Decote abusado também. Deve opinar. Pode escolher o canal de televisão. E o filme no cinema. Flerte sem ser vulgar. Ceda à primeira cantada. Sem ser vulgar. Pode viajar com o namorado (e desligar o celular). Não pegue no pé de ninguém. Mas não seja ausente. Pode beber se a bula do remédio permitir.

- Que saco!

- É...

- Essas regras. Deveria ao menos haver uma idade em que tudo fosse permitido.

- Relaxe.

- Não dá pra relaxar.

- Você bebeu demais?

- Talvez.

- Vamos para casa.

- É, acho que não tenho mais idade...


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil lançou recentemente seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, pela Buqui editora.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: INTIMIDADE

por Nurit Gil


Apesar da criação tradicional, Carola não era exatamente pudica. Descobrira até bem cedo as tentações da vida e sucumbira a quase todas elas. 

O primeiro beijo de língua aconteceu enquanto suas amigas ainda tentavam fazer tranças em bonecas. O baseado, o sexo e - por que não - o brigadeiro de panela em madrugada de fossa, todos antes do baile de debutantes do colégio, quando estreou a tatuagem de onça desenhada do pescoço ao cóccix sob o vestido de tafetá decotado. 

Rodou o mundo, namorou, pirou, meditou, experimentou, separou. Repetidas vezes. Sabia que era moderna para os padrões da sociedade e, inclusive, nutria certo orgulho quando referiam-se a ela como uma libertina.

Mas aconteceu de um dia, voltando para casa no final da tarde, parar para observar a loja de colchões que recentemente havia inaugurado em seu bairro. Pé direito duplo, vitrine imensa de vidro, lustre de cristais vermelhos. Coisa fina. Lá dentro, um homem - nem bonito nem feio - parecia explicar para a vendedora o modelo que procurava. Enquanto Carola admirava a parede de tom preto, imaginando se a cor ficaria bem em sua recém reformada sala, a dupla seguiu em direção ao colchão da vitrine. O homem então deitou, virou de um lado, experimentou de outro, ficou de bruços, mexeu o corpo, aconchegou-se em conchinha.

Carola ruborizou. Ela jamais exporia tamanha intimidade. Uma coisa é sair pela rua exibindo sacola de sex shop, meio gosto, meio marketing. Outra, é mostrar-se de verdade para os transeuntes. Dormir é coisa íntima, sinceridade para poucos, sem fingimento, performance ou manual indiano. É você ali, pá, escancarado e sem qualquer filtro.

Tamanho fora seu incômodo, que ela deixou a passos largos a parede preta para trás. Era amor, ela tinha certeza. Trinta segundos de ternura que viraram paixão, que evoluíram para amor. Nunca sentira isso.

No dia seguinte, voltou para a vitrine. Nada. Procurou aquele homem por uma semana. Nem sinal.

Carola ja experimentou de tudo um pouco, mas agora sua busca mudou. Ela quer beijos de bom dia com gosto de café, silêncios que não sejam constrangedores, escovas de dente encostando-se no banheiro, mensagens de amor às duas da tarde e roupa íntima pendurada no box. Alguém que a veja dormindo de meias no inverno, com pijama de algodão, cheiro de sabonete, placa de ATM nos dentes e ressonando de cansaço. De todas as tentações da vida, ainda falta sucumbir a uma delas: dormir de conchinha.

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil está lançando seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, em dois eventos no mês de novembro: na programação da FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE, haverá sessão de autógrafos no dia 15 de novembro, às 18h.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

PRATA DA CASA: Segredo

por Luís Edegar Costa 




Estava tudo cheio de pó, mas igualzinho. Cinco anos depois, a mesma arrumação do quarto que ela escolheu para os nossos encontros. No canto de sempre, a gaiola branca com as andorinhas de porcelana e suas asas abertas amarradas por fios de nylon. Eu lembro bem do dia em que ela pendurou a gaiola, sem a minha ajuda, logo que escolhemos o lugar. Orgulhosa, queria mostrar felicidade pela vida que acreditava em transformação. Comprara a gaiola numa loja de usados. Era para ser uma surpresa. E foi. Aproveitei a chance e não escondi o meu desprezo. Decoração de puta, eu pensei, mas não disse. Nem precisei. Só que não era. Mesmo assim, fiz uma cara! Era obrigatório deixar bem claro que nada mudaria. Enquanto eu recordava essas tentativas de educação amorosa, sem arrependimento, a armação em ogiva da pequena jaula, opaca, avisava a escassa claridade que se ia com o fim da tarde. Eu precisava recordar, tinha pressa. Logo estaria escuro e eu não veria mais a cama coberta pela colcha em matelassê, bordada com a imagem de um casal num piquenique e que trazia bem no centro uma cesta de frutas transbordando. Tampouco o biombo decorado com o desenho de uma mulher nua segurando um unicórnio pelo chifre. Tudo para ela tinha de ter uma figura, uma imagem . Tudo era exagero. Como ela conseguia passar tanto tempo nesse quarto? Era para ser uma peça de pudor, o tal biombo, para ela se trocar sem eu ver. Foi levado pra lá contra a minha vontade. Vergonha fajuta dessa sonhadora tola. Pra quê um biombo? Tudo o que ela queria era se afastar da vida anterior, bem sei, pelo menos enquanto estivesse ali. Ela é que não sabia como e a mobília, escolhida a dedo, dizia tudo. Liso mesmo, sem estampa, só o abajur de cetim amarelo-cobre que ela inventou como peça de família. O que sei é que quando aceso iluminava o corpo dela com uma maciez que me enlouquecia. Punha chama na nossa cama, nua da colcha, estreita e de madeira sem lustro. Coisa do demônio esse abajur. Amar? Eu lá tinha tempo pra isso. Meu negócio com ela era outro. Nem por isso deixava de criticar. Censurava sem economia. Desse jeito ela ficava mais submissa, se sentia diminuída, humilhada. Não sei por que não reagia. A vida toda fora assim. Eu pressentia e não afrouxava. Assim ela se entregava como se eu fosse dono, podia fazer com ela o que quisesse. A mesa de cabeceira era uma só, bem simples, para não ofuscar o troféu, era assim que parecia o abajur. Tinha uma gaveta onde guardávamos as camisinhas e ela um sapatinho de criança, um tênis que cabia na palma da mão. Nunca entendi pra quê. Também nunca perguntei. Ela ia contar uma história triste porque pra mim parecia coisa de defunto. Era coisa dela, essas invenções. A cômoda laqueada, também de segunda mão, era mais um item dessa imaginação. Eu não queria, não havia roupas, aquele era um quarto de encontros, nossos encontros. Parei por último nela, antes de sair, aproveitando o restinho de luz. Mesmo contrariado, era a única peça que eu gostava de fato. Ela escolheu por causa da pintura e dos puxadores em forma de pingentes, vitrificados. Não eram de bom gosto. Mas eram do meu agrado. Combinavam com o revestimento e sempre me pareceram lágrimas congeladas, os puxadores. Ela dizia que não, que lembravam uma música que a mãe ouvia para se emocionar, para se livrar de uma dor que não tinha cura. No fundo concordava comigo, eram lágrimas quando seus olhos vítreos e alheios se detinham neles, invariavelmente, quando eu já me vestia para ir embora. Do que ela tinha saudade? Agora, quase noite, nada mais tinha importância, tudo era vulto, tudo desaparecia. Sem pressa, caminhei em direção à porta, sentido o chão de madeira cheia de estrias, que pareciam mais abertas e profundas diante de todo o resto imobilizado. Todos os vestígios do nosso segredo, sem vida. 



Na seção PRATA DA CASA, publicaremos semanalmente textos escritos pelos alunos das diversas oficinas literárias ministradas na Sapere Aude! Livros. O texto de hoje é de Luís Edegar Costa, ex-aluno da Oficina de Iniciação à Criação Literária do professor Robertson Frizero. Quer conhecer mais sobre nossas oficinas literárias? Acesse: http://oficinasliterarias.wordpress.com

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: TERAPIA DE CASAL

por Nurit Gil .


"A vida é a arte do encontro,
embora haja tanto desencontro pela vida"
(Vinicius de Moraes)

- Boa tarde, eu sou a Dra. Clarissa.
- Olá, Fernanda.
- Prazer, Fábio.
- Por favor, sentem-se. Falem um pouco sobre vocês, o que os trouxe para a terapia?
- Na verdade, eu amo a Fê. Por mim, nem precisaríamos estar aqui.
- Eu adoro o Fá, temos uma boa relação.
- É...
- Estamos juntos há cinco anos.
- É...
- Fala também, Fábio. Só eu falo?
- Quem quis vir aqui? Hein? 
- Mas você aceitou.
- Por não aguentar mais escutar reclamações.
- Viu, Dra. Clarissa? Como você pode começar a notar, ele gosta de minar minha autoestima.
- Mas ela vive reclamando. Eu não mino sua autoestima, apenas sou sincero.
- Então porque não usa sua sinceridade para assumir que não me ama mais?
- Amo sim, mas...
- Mas?
- Não quero ter filhos agora. Ponto.
- Quando você quer? Quando eu tiver cinquenta anos?
- Eu preciso de um tempo. Quero avançar na carreira primeiro, me estabilizar...
- E o meu relógio biológico? Ah, esquece, não faz parte de sua planilha...
- Dra. Clarissa, ela acha que por eu não querer filhos agora, não a amo.
- E não é? E não é?
- Não!
- Tudo tem que ser do seu jeito, Fábio.
- Não é hora, Fernanda.
- Então faz um favor, pegue esta planilha onde você projeta cada passo da sua vida, suas roupas, sua escova de dentes e saia do meu lado de uma vez por todas!
A sessão acabou. Acertaram o valor e agendaram outro horário, embora ambos insistissem que não haveria próxima vez. Saíram porta afora, seguindo caminhos distintos.
Fábio ainda olhou para trás, a tempo de ver Fernanda firme em sua opinião, caminhando decidida. Era final do dia. E ela virou de volta para ele. 
No mês seguinte, estava grávida. 
Para Dra. Clarissa, voltaram apenas para explicar:
- Não era hora. Segundo minha projeção, seria para daqui a uns três anos. E sou muito racional, extremamente firme em meus argumentos.
- E o que o fez mudar de idéia?
- Os olhos dela. Ele brilham quando cai o sol.

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil está lançando seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, em dois eventos no mês de novembro: na programação do FEIRA ALÉM DA FEIRA 2014, o lançamento será na livraria Bamboletras, no dia 8 de novembro, a partir das 17h30, com atividades para crianças; e na FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE, no dia 15 de novembro, com sessão de autógrafos.

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

LENDO FANTASIA: Fantasias Africanas

por Patrícia Degani
English writer Neil Gaiman. Taken at the 2007 ...
Neil Gaiman
Os leitores de Fantasia sabem que muitas histórias usam lendas celtas e nórdicas como base dos seus mundos fantásticos. O principal motivo disso é a força que o gênero fantástico tem no mundo anglo-saxão. Na Inglaterra, obras como Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol ou 1984 de George Orwell são consideradas clássicos da Literatura e não de um gênero específico.  Mas nada impede que escritores de outros quadrantes resolvam usar mitologias diferentes como inspiração de suas criações. Uma delas são as diversas mitologias africanas. A tradição caribenha e nigeriana está presente, por exemplo, nessas três obras: Anansi Boys, de Neil Gaiman; Akata Witch de Nnedi Okorafor e Wild Seed de Octavia C. Butler. 

Anansi Boys
Anansi Boys,
de Neil Gaiman
Neil Gaiman parte da cultura caribenha para escrever o divertido Anansi Boys. Criador da série em quadrinhos cult Sandman, Gaiman tem um texto leve e bem-humorado. Nessa história o herói é o trickster Anansi e seus filhos gêmeos que precisam enfrentar uma ameaça do mundo espiritual.

Akata Witch, de Nnedi Okorafor. (Imagem: Amazon)
Akata Witch,
de Nnedi Okorafor.
Okorafor situa sua história na Nigéria em Akata Witch, tendo como ponto de partida a cultura Igbo. A série da escritora tem ecos de Harry Potter e de Percy Jackson, porém a cor local é tão original e a visão de mundo tão contrária à americana ou inglesa que o resultado é muito interessante. Por exemplo, o ensino formal tem pouco peso no mundo ficcional de Okorafor. A experiência e saber "se virar" são coisas muito mais importantes. É um romance infanto-juvenil bem escrito, cuja originalidade está nesse fundo cultural diferente do que se está acostumado. Para o leitor brasileiro, momentos de identificação serão constantes, uma vez que a Nigéria é um dos berços da cultura africana no Brasil (os Orixás). A protagonista é uma negra albina e Okorafor faz a defesa das diferenças como algo especial, portador de magia. 

Wild Seed, de Octavia C. Butler. (Imagem: Amazon)
Wild Seed,
de Octavia C. Butler.
Por fim, Wild Seed também usa a mitologia da mesma região africana de Akata Witch, mas é um romance com conteúdo mais adulto. A trama segue dois seres mágicos africanos - Doro e Anyanwu - e sua saga no Novo Mundo, na época do tráfico negreiro. Essa pequena seleção de três livros mostra como é possível criar universos fantásticos interessantes sem fazer uso de mitologias que estão distantes da própria cultura em que se vive. Celtas e nórdicos não deixaram marcas entre nós. Eles não estão nos nossos gestos, falas e pensamentos, a não ser como um imaginário emprestado. É interessante ler sobre eles, mas porque não escrever sobre aquilo que carregamos conosco? 


 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos.