segunda-feira, 6 de junho de 2011

::: TELENOVELAS E LITERATURA por Robertson Frizero :::

Há sessenta anos, foi ao ar pela extinta TV Tupi de São Paulo o primeiro capítulo de Sua vida me pertence. Já ocupando o horário das 20 horas, calculado à época para atender a dona de casa que servira o jantar e nesse momento já teria dado conta dos afazeres do lar, a primeira telenovela brasileira, de apenas 15 capítulos, a produção inaugurou o gênero na televisão brasileira já rompendo tabus ao mostrar um beijo entre os protagonistas Walter Foster, também autor e diretor da novela, e a atriz Vida AlvesSua vida me pertence, que não era transmitida diariamente e era encenada ao vivo, é hoje apenas o marco inicial de um gênero televisivo que, no Brasil, cresceu em todos os sentidos, quer seja no número de capítulos, nos investimentos das emissoras de televisão, na complexidade de suas tramas e no impacto cultural que exerce na vida brasileira.

Norma (Glória Pires e suas leituras)

É curioso, contudo, que o gênero de maior sucesso na televisão brasileira ainda sofra o preconceito dos que o vêem como uma arte menor ou um subproduto literário. A telenovela surgiu da literatura, é a transposição para a televisão do que eram as radionovelas que, por sua vez, foram em seu tempo a tradução para o rádio do que era antes veiculado por meio escrito ― o folhetim, uma história de teor geralmente melodramático e que era contada em capítulos publicados periodicamente nos jornais. Alguns clássicos da literatura, hoje apreciados e estudados na Academia, foram divulgados pela primeira vez por essa modalidade de publicação. Dostoiévski, Machado de Assis, Alexandre Dumas e José de Alencar publicaram muitas de suas histórias em jornais, capítulo a capítulo ― e a posterior edição dessas histórias no formato de livros era, não raro, a legitimação de um sucesso alcançado anteriormente nas páginas dos jornais.


Norma (Glória Pires) em Insensato Coração

Além dessa inegável herança literária das telenovelas, a história desse gênero televisivo é rica em exemplos tanto de adaptações diretas de obras da literatura universal ― de “A Cabana do Pai Tomás”, uma das primeiras produções da televisão brasileira, a experiências mais recentes como a telenovela da TV Bandeirantes “Paixões Proibidas”, fruto da união de três romances do português Camilo Castelo Branco ― quanto em intertextualidade: não raro identificamos nas telenovelas brasileiras tramas e situações extraídas de mitos literários como Romeu e Julieta, Dom Quixote ou Fausto, ou mesmo gêneros específicos, caso do universo da literatura de cordel muito bem explorado pela atual “Cordel Encantado” e seus reis, cangaceiros e amores proibidos. No Brasil, há até mesmo o curioso caso de obras literárias que ganham uma sobrevida no cânone literário a partir de sua repercussão quando adaptadas para o formato de telenovela ― caso dos romances “Sinhá-Moça”, de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, e “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães, este último adaptado por Gilberto Braga e até hoje a telenovela mais reprisada e comercializada no mundo.

A cabana do Pai Tomás


Gilberto Braga, um dos autores de uma das tramas atualmente transmitidas pela TV Globo, a multifacetada “Insensato Coração”, está a introduzir um novo ponto de contato entre a telenovela e a literatura nessa longa história de influências mútuas. Seus personagens não raro aparecem na tela lendo e comentando livros. O mais surpreendente é que não se trata aqui de ações de merchandising de títulos atuais, como já se viu em outras novelas, mas de uma disposição do autor em divulgar o hábito da leitura ― quando mostra o Teodoro de Tarcísio Meira desfrutando A Rua dos Cataventos, de Mario Quintana, em seus momentos de lazer ― ou mesmo de mostrar o crescimento psicológico da Norma de Glória Pires, que amadurece e arquiteta seus planos de vingança contra o homem que a fez ir para a cadeia lendo obras como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Ricardo Linhares, o outro autor da mesma novela, declarou recentemente que
A Escrava Isaura (Rede Globo)
Os títulos (lidos pela personagem) não serviram de inspiração para criar a trama. A função deles é mostrar que (a personagem) está amadurecendo psicologicamente. Por intermédio da leitura, ela adquire outra dimensão do ser humano.
A importância da telenovela no imaginário do brasileiro é inegável e ultrapassa barreiras geracionais ― como prova pesquisa recente que mostra as telenovelas como o tema mais discutido no Facebook e no Twitter. Em um momento no qual o formato busca novas formas de interação com o público, usando blogs e redes sociais para dar vida e profundidade aos seus personagens, observar essa aproximação entre telenovela e literatura é algo que merece ser louvado e divulgado. Trata-se de alimentar todo um novo público com informações que outros meios falham hoje em transmitir. Maria Imacolatta Lopes, coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da Universidade de São Paulo, declarou recentemente a uma revista que “o interesse das gerações mais novas por programas do passado é importante para a construção da identidade nacional, (...) [pois] nossa memória da telenovela é social e afetiva”.
Alimentar essa memória afetiva também com livros e literatura, através dessa maravilhosa plataforma de divulgação que é a telenovela, mostra-se um caminho mais inteligente e necessário que acusar o gênero de ser algo menor e dispensável.
Robertson Frizero é Mestre em Letras pela PUCRS, escritor e tradutor. Seu livro de estreia, o infantil Por que o Elvis não latiu?, foi considerado um dos trinta melhores livros do ano pela Revista Crescer em 2011.

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