quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: DAMA, REI E CURINGA

por Nurit Gil


Celso e Isabel estavam juntos há mais de vinte anos e eram, um para o outro, uma agradável companhia para passeios vespertinos, matinês no cinema, além da tradicional macarronada de domingo em família. Novidade não havia, mas viviam plácidos o dia-a-dia. Como seus filhos já não passavam muito tempo em casa, costumavam organizar encontros com casais amigos para animados campeonatos de tranca. Nestas ocasiões, o furor competitivo dos participantes era instigado.

- Celso, você tinha um valete.

- Mas que nada. Bati direto.

- Levante, quero ver se não escondeu a carta.

- O que Aurélio? Está duvidando da minha idoneidade?

E a testosterona reprimida nas matinês dos filmes água com açúcar ficava evidente na sala do apartamento anfitrião, fazendo tremer os bibelôs da mesinha de canto. As esposas corriam para acalmar os ânimos, oferecendo água com açúcar e repetindo a recomendação médica "Olha o coração, olha o coração". A não ser Isabel. Algumas mulheres até achavam que seu sorriso de canto exibia certo prazer:

- Isabel, o Celso vai ter um troço.

- Não vai não, ele está bem.

Naquelas noites, Isabel enxergava um traço neandertal em Celso e por isso, ela sempre tratava de cuidar para que houvesse café passado na térmica, petit-fours doces na sala e lingerie preta sob a roupa. Como os casais jogavam em dupla, ela, vez ou outra, para quebrar a monotonia, descartava um curinga:

- Isabel, você viu a carta que você jogou?

- Ai, Celsinho, foi sem querer.

- Ah, mulher, faça me o favor!

Celso batia nervoso na mesa. Isabel sorria de canto. A noite prometia.

Acontece que, com o passar dos anos, os filhos casaram e os netos começaram a chegar. A família voltou a frequentar a casa de Celso e Isabel e, bastava eles pensarem em agendar um campeonato, para o telefone tocar:

- Mãe, você pode cuidar da Julinha este sábado?

Ninguém entendeu quando Celso arrumou as malas e saiu de casa.

- Deve ter arrumado outra.

- Pobre Isabel.

E o tempo passou.

Celso, da euforia inicial de homem livre, leve e solto, passara à reclusão. Saia pouco e os amigos apostavam quem se tinha abandonado a esposa por outra, agora já estava sozinho.

Um dia, o telefone de Isabel tocou:

- Bel?

- Celso? 

- Eu...

- Como você tem coragem de me ligar?

- Bel, deixa eu falar... Vamos nos encontrar.

- Nunca mais me ligue.

- Um passeio vespertino?

- Me esqueça.

- Estreou um filme ótimo...

- Passar bem.

- Tem aquele restaurante...

- Adeus.

- Uma partida de tranca?

Isabel não conseguiu resistir ao convite. E depois de descartar dois curingas eles tiveram certeza: eram dama e rei do mesmo naipe. E bateram direto. 


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

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