quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Winston e a força da ignorância

Cena de "1984" (1984), adaptação cinematográfica de Michael Radford da obra de Orwell


"It was a bright cold day in April, and the clocks were striking thirteen."

O conceito de literatura distópica surgiu para reunir textos que falam do porvir da humanidade, mas que o veem como um resultado negativo ou mesmo catastrófico do presente - em outras palavras, de forma anti-utópica. Embora o tempo seja sempre futuro, o espaço dos romances e contos distópicos é quase sempre o mesmo em que se dá a criação da obra e o foco são as mudanças sociais decorridas das tendências que o autor enxerga em seu tempo present.

Em 1984, obra-prima de George Orwell publicada em 1934 e talvez um dos livros mais influentes do século passado, o autor projeta para cinquenta anos depois de sua criação o que seria um futuro nascido do ambiente opressor que se desenhava na Europa daquela véspera da Segunda Guerra Mundial. Mas Orwell escrevia a partir de uma visão muito particular e bem embasada sua: ele fora militante comunista na sua Inglaterra natal e, desencantado com os horrores que observava, tanto nas reuniões de seu partido quanto nas grandes nações que haviam adotado o Socialismo, como a União Soviética, construiu em seu romance um mundo no qual esse sistema político havia dominado os meios de produção e o poder. A crítica ao comunismo, no entanto, transformou-se em um libelo fascinante contra toda forma de totalitarismo, já que os ditadores de qualquer matiz político acabam por usar os mesmos velhos esquemas de dominação.

"O Grande Irmão vigia você"
Acompanhamos em 1984, desde a frase inicial - talvez uma das mais sutis apresentações de um livro distópico já escritas, quase intraduzível para o português em seu impacto para os primeiros leitores -, a agonia de Winston, um operário em quem começam a brotar percepções de que aquele mundo não satisfaz plenamente sua sede de viver. Estamos na Oceania - o novo nome que a Ilha Britânica recebe depois da vitória socialista do partido único IngSoc -, em uma sociedade dividida em três distintas classes sociais: o Partido, os proles e os líderes do Partido. Winston é do Partido, o que significa dizer que teve razoável instrução, é dono de uma inteligência que lhe permite ser empregado no setor encarregado de modificar o passado nos jornais e revistas e que é, por ser do Partido, vigiado e controlado a todo instante pelas teletelas - que transmitem e coletam imagens e sons - e pela desconfiança permanente instaurada por uma cultura que privilegia a delação a qualquer suspeito de insubordinação. Nos primeiros momentos mostrados no livro, Winston tem em suas mãos um pequeno caderno que comprou nos bairros proletariados, onde os membros do Partido não devem transitar, mas onde tudo é mais liberado e permitido. Nesses bairros, frequentados em segredo por alguns integrantes do Partido, compra-se de tudo, como em um gigantesco mercado de pulgas. E é ali que Winston terá seus encontros secretos com Julia, jovem do Partido com quem vive um romance secreto e subversivo.

George Orwell
O livro de Orwell é tão rico em implicações filosóficas que se torna uma tarefa amarga escrever um texto curto sobre suas qualidades. Dele surgiram expressões que até hoje surgem nos debates mais acalorados sobre os sistemas de controle de governo - ou mesmo em programas de televisão de gosto questionável como o famoso Big Brother, que rouba seu título do nome daquele que seria, no livro, o grande líder da Oceania, referência de amor e idolatria para todos os membros do Partido, o ditador paternal que tudo vê e tudo sabe. Vem de Orwell a ideia da novilingua - uma língua usada para a dominação dos membros do Partido pela eliminação e transformação contínua das palavras cujos sentidos não interessam aos planos de poder dos líderes; ali está também a genial percepção de que, em um esquema ditatorial, as massas são mantidas em estado de alienação para darem menos preocupações aos detentores de poder - e no livro isso acontece através de máquinas criadas para gerar romances açucarados e músicas de rima fácil e tema sentimentalóide, descrições perfeitas do autor visionário para o que hoje invade as rádios e livrarias do mundo; é sua a concepção do estado de duplipensar, no qual os membros do Partido eram levados a aceitar duas ideias paradoxais ao mesmo tempo, em uma deliberada destruição de qualquer esquema lógico e racional de análise da realidade.
 

O livro é repleto de frases memoráveis e ideias que não nos permitem chamar Orwell de algo menos que visionário - como os lemas do IngSoc, obra-prima do duplipensar: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força. Em poucas palavras, por exemplo, Orwell define a certa altura do livro as bases de qualquer ditadura:


Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado.

Um homem além de seu tempo, Orwell não usa em 1984 o mesmo tom de fábula com que critica a Revolução Russa no genial A Revolução dos Bichos. Na narrativa que nos faz acompanhar Winston até as câmaras de tortura e à "libertação" final do "mal" que lhe afligia, o texto é um assustador romance "histórico" cuja função maior na história da literatura recente é alertar-nos para a constante possibilidade de que um futuro como esse venha a existir.      


*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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