quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ensaio sobre a rotina: MAIS PERTO QUE A CHINA

por Nurit Masijah Gil

Não sou exatamente especialista em análises críticas de livros. Leio, gosto, não gosto, amo, reflito. Ponto. Mas quando ele de alguma forma me inspira, fico extremamente tentada a escrever sob a ótica de sua temática, como se pudesse, em seguida, remeter o texto ao autor, dizendo "adorei seu ponto de vista... O que você acha do meu?". Semana passada, com aquela leve e gostosa tristeza de quem despede-se de uma história da qual já era íntima, acabei 'Nu, de botas", sentindo que poderia marcar um café com o Antônio Prata e compartilhar tantas memórias em comum de uma típica infância paulistana. Com os pés no chão, não tenho pretensão real de agendar o bate-papo, mas para a sorte da minha história (meus filhos poderão guardar como recordação), já escrevi e desenterrei uma mão inteira de lembranças. Obrigada, Antônio, por inspirar.
 




 Era um domingo de sol. Minha mãe estava grávida de muitos meses e, precisando de um tempo para descansar (eu demorei anos para entender que mães definitivamente precisam de um tempo para descansar) pediu a meu pai, um homem na faixa dos trinta e muitos anos, industrial respeitado, esportista incansável e com aptidão bastante incipiente na arte de cuidar dos filhos, que fizesse um programa comigo, então com sete anos e com minha irmã, dois anos mais nova.

 Acho que o cansaço de minha mãe era tanto que, mesmo ciente dos riscos da situação, ela conseguiu relaxar numa época em que telefone celular era, no máximo, artefato do desenho dos Jetsons. Até aquele momento, nossa relação com meu pai resumia-se confortavelmente a beijos de boa-noite, almoços de domingo na casa da minha avó e - emoção das emoções - comemorar as vitórias do Brasil na Copa de oitenta e seis com a cabeça para fora do teto solar do Monza dele, rodando pelas ruas de São Paulo.
 A idéia era passear no Parque do Ibirapuera. Delícia. Poderíamos comprar sorvete, alugar uma bicicleta ou brincar em frente ao lago. 


 Talvez seja puro saudosismo, mas o parque nos anos oitenta tinha as árvores mais verdes, o ar mais puro e as ruas mais tranquilas. Passeamos um pouco e, provavelmente no intuito de vencer o tédio, meu pai, sempre criativo, teve uma excelente idéia:


 - Já sei! Vamos brincar de esconde-esconde!


 (Pausa da menina de sete anos que cresceu e hoje tem dois filhos: brincar-de-esconde-esconde-no-parque-do-ibirapuera. Inspira. Expira. Prossigamos).


 - Legal! Gritamos em coro


 - Primeiro você, Nurit. Mas não vai longe, hein?



 O que é longe para uma criança se, cavando um buraco na areia, você podia chegar até a China? Andei por um tempo procurando um esconderijo menos óbvio que atrás de uma das cem mil árvores do parque, até que avistei uma lata de lixo enorme. Perfeito. Detrás dela, conseguia enxergar meu pai e minha irmã, que tinham o tamanho aproximado de duas formigas.


 E eu os observava indo, vindo, indo, vindo, indo... Basicamente, eu tinha arrasado, seria a grande campeã da brincadeira. 


 Não sei quanto tempo se passou. Na minha opinião, o tempo de um recreio. Na do meu pai, que ele deve ter compartilhado na terapia mais tarde, umas três horas e meia.


 Comecei a notar um tom de desespero nos passos dele. Provavelmente, pensei, leonino que é, não gosta de perder. Esperei mais um pouco. Mais um pouquinho ainda (também sou leonina). Quando estava quase dormindo e já com vontade de fazer xixi, resolvi aparecer.


 - Vocês não são de nada, só comem marmelada!


 Nós sabíamos exatamente o momento de ficarmos quietas e, além dos gritos, a cor vermelha do rosto do meu pai indicava que este era um deles. Obedecemos, demos as mãos e baixamos a cabeça.


 - Pai, posso comprar um Dip'n'Lik?


 Não, minha irmã definitivamente não sabia reconhecer estes momentos.


 - Compra, vai, compra logo


 - Oba!


 Então ela mergulhou o pirulito no açúcar, lambeu e, num descuido, deixou tudo cair no chão.


 Berreiro. Chiliques. Entrem no carro. Silêncio. Vamos para casa.


 No final da tarde, espiei por trás da porta do quarto dos meus pais. Minha mãe arrumava algumas roupas, enquanto meu pai, largado na cama, pálido, repetia "sozinho, não mais, hein?!".


 Mal sabia ele que, poucos anos mais tarde, passaria a endossar o grupo dos pais separados que passam, final de semana sim outro não, dias inteiros sozinho com os filhos. Mas daí é outra história. No plural.



*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

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