quinta-feira, 19 de junho de 2014

O corpo abandonado e a consumação do indivíduo

Um corpo de mulher, com o rosto desfigurado pela crueldade com que fora arrastado até ali, é encontrado por um homem humilde à beira de uma estrada. Sem possível identificação imediata, é levado à perícia e repousa sobre a mesa fria de um médico legista. Naquela mesa, iniciada a necrópsia, é aquele corpo quem irá contar toda a história da mulher que o habitava - mas não em um exercício sobrenatural como o do machadiano "Memórias Póstumas de Brás Cubas"; qual um instrumento musical raro, precisará das habilidades do legista para ser desvendado aos poucos e desnudado diante dos olhos do leitor. É dessa premissa que parte o genial Este é o meu corpo, romance de estreia da escritora portuguesa Filipa Melo.

Lançado em Portugal em 2011 - no Brasil, seria publicado apenas três anos depois -, o romance aborda, de forma magistral, uma temática difícil e desafiadora - a morte e, mais precisamente, a violência contra a mulher que resulta naquela morte trágica e brutal da protagonista inerte dessa história. Escrito com singular apuro de linguagem, com total economia de recursos e prosa envolvente, Este é meu corpo tem em sua construção um dos pontos mais marcantes: o romance é contado ora em primeira pessoa - na voz do médico legista que examina o corpo de mulher e, solitário, conversa consigo mesmo e com o cadáver sobre o ato de examiná-lo em busca de sinais que lhe contem a sua vida -, ora em terceira pessoa, levando o leitor a conhecer fragmentos de narrativa sobre a falecida e as pessoas que conviviam a seu redor.

O resultado final é essa pequena obra-prima - que até hoje permanece como único romance escrito pela autora. Pelas mãos do legista, pela frieza de suas palavras, mas também por seu profundo amor por seu ofício, o leitor é levado a conhecer a mulher penalizada por ser forte e livre em um universo de figuras masculinas fragilizadas e pressionadas sob o peso das exigências de uma masculinidade nascida a fórceps. O próprio médico legista é também um desses homens fracos, que por não conseguir se relacionar com o mundo, prefere a companhia de seus mortos, seu controle sobre eles. Mas, como o legista, todos os personagens que orbitavam em torno dessa mulher morta parecem viver o mesmo mal - a incapacidade de viver em grupo, de encontrar um meio termo que lhes torne a vida aceitável na companhia do outro. Não por acaso, em sua constante ironia, o médico legista irá declarar que "os mortos falam". Ao final do livro, o leitor perceberá que a personagem mais viva daquelas páginas é mesmo aquela cujo cadáver repousa na mesa fria da perícia.

Em entrevista concedida um ano e meio após o lançamento do livro, Filipa Melo recordou um pensamento do Milan Kundera, que diz que "nos preocupamos tanto com a imortalidade que nos esquecemos de pensar na morte". Para a autora, a sociedade ocidental e católica, há muitos séculos, tenta "domesticar a morte, afastá-la", pensá-la como "um estado intermédio, entre a vida e uma outra coisa qualquer que não se sabe bem o que é". Este é o meu corpo seria sua forma de refletir na morte como "a consumação do indivíduo enquanto pessoa (...), um momento único e que nos transforma em seres únicos(...), de regresso à nossa singularidade, mesmo quando passámos a vida inteira a construir pontes para os outros." Despojada de qualquer humanidade, o corpo de mulher sem rosto e sem individualidade parece-nos, ao final do livro, quando o médico legista dá por concluída sua tarefa de interlocutor dos mortos, um memento mori de nossa mesma, fragilíssima condição.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário