quarta-feira, 27 de agosto de 2014

ENSAIO SOBRE A ROTINA: Novecentos e noventa e nove

por Nurit Gil

- De novo não.
- O que foi?
 - Essa sua mania irritante de apertar o tubo da pasta de dente no meio.
 - Espera, eu sou um marido nota mil, carinhoso, presente, fiel e você vai fazer cena por causa da pasta de dente?
- Nota mil?
- É, nota mil.
- Vamos começar: só sai para jantar se for no mesmo restaurante, novecentos e noventa e nove, não suporta minhas tias, novecentos e noventa e oito, sai para jogar poker com os amigos toda quinta-feira, mesmo que eu esteja de cama, novecentos e noventa e sete...
 - Falando nisso, quando é que você não está de cama?
 - Que?
 - É. Adoro você na cama, desde que não esteja reclamando.
 - Eu tenho enxaqueca, você sempre soube disso.
 - E eu gosto de sentar na mesa quinze do Printz, você sempre soube disso.
 - Sim, e comer aquela maldita mostarda para passar três dias com azia.
 - E te ver três dias bufando ao invés de me preparar uma canja. O que me leva....
 - A que? A que? Quero saber.
 - À sua completa inabilidade na cozinha.
 - Poupe-me de preparar canja e desfiar frango.
 - Poupo-te sim, mas arrozinho com bife grelhado seria o mínimo.
 - Algum dia te enganei? Algum dia disse: "case comigo e sinta-se o rei Momo?"
 - Mas dez anos de lasanha congelada não somam pontos a seu favor.
 - E o que você acha de escutar, há dez anos, em todas as refeições de família: "hoje tem o pavê da mãe? Mas é "pavê" ou "pacomê"?
 - Pelo menos minha mãe prepara pavê para mim.
 - E esfrega na minha cara que soube prender o marido pelo estômago.
 - Agora o problema é minha mãe?
 - Agora?
 - Mamãe não, mamãe não...
 - Você faz isso desde que nos conhecemos,
 - Faço o que?
 - Inverte. Transforma as minhas reclamações em suas,
 - Amor...
 - É verdade, é verdade, não vem dizer que não.
 - Lembra quando nós conhecemos?
 - Não muda de assunto.
 - Aquele mar, aquela praia.
 - Hum.
 - Você deslumbrante num biquini branco.
 - E você galanteador.
 - Pois é.
 - Perfumado.
 - Sempre.
 - Oferecendo-se para passar protetor solar nas minhas costas.
 - Foi meu charme.
 - Eu deveria ter percebido.
 - O que?
 - Quando você apertou o tubo.
 - Por que?
 - Foi no meio.


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

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