quinta-feira, 18 de julho de 2013

Neoptólemo e a crise moral

NEOPTÓLEMO - Então não é mesmo nada seguro abordá-lo?
ULISSES - Não, a não ser que o agarres pela astúcia,
como te aconselho.
NEOPTÓLEMO - E não te parece vergonhoso mentir?
ULISSES - Não, se a mentira nos traz a salvação.
NEOPTÓLEMO - Com que cara ousa alguém proclamar tal doutrina?
ULISSES - Quando se age para o nosso interesse, não se deve hesitar.

(Filoctetes, tragédia de Sófocles - tradução de José Ribeiro Ferreira)


Filoctetes em antiga cerâmica grega
Entre 431 a.C. e 404 a.C., os interesses econômicos e políticos entre diferentes cidades de uma mesma origem motivaram o início do declínio de um aparente equilíbrio de forças: Atenas, centro civilizatório e político da grécia, e Esparta, cidade grega de forte tradição militarista, entraram em um conflito de vinte sete anos, a Guerra do Peloponeso, uma luta de gregos contra gregos, motivada pelo conflito de interesses econômicos e políticos entre as duas cidades gregas mais importantes: Atenas e Esparta. O confronto, vencido pela chamada Liga do Peloponeso - uma conjunção de diversas cidades oligárquicas lideradas por Esparta -, seria motivo do enfraquecimento das cidades gregas como um todo e o ambiente ideal para que os exércitos de Filipe II, rei da Macedônia, conquistasse a Grécia décadas mais tarde, deixando o trono grego como herança para o filho, Alexandre, que levaria o helenismo às mais remotas regiões do mundo conhecido.

As questões morais envolvidas na nova configuração de poder ateniense decorrente do envolvimento da cidade de Atenas na Guerra do Peloponeso foram, segundo acreditam muitos estudiosos, o mote de Filoctetes, tragédia de Sófocles escrita no ano de 409 a.C. Em linhas gerais, a peça teatral narra a chegada de Ulisses - o herói de "A Odisséia", de Homero - e Neoptólemo - filho do herói Aquiles, de "A Ilíada", do mesmo Homero - à isolada ilha de Lemnos, onde vive esquecido Filoctetes, o Maliense, filho de Poiante, abandonado anos antes pelo próprio Ulisses por conta de uma chaga devoradora que lhe supurava um pé e impedia-o de cumprir suas missões na guerra, além de, segundo as palavras do próprio personagem Ulisses, encher constantemente todo o acampamento com alaridos selvagens e agoirentos, aos gritos e gemidos. A ida dos dois homens àquela ilha inóspita, contudo, tem motivações maiores: Ulisses deseja tirar das mãos do velho e doente Filoctetes as armas de Héracles, semideus filho de Zeus, sem as quais, rezava uma profecia, Ulisses jamais destruiria Tróia. Para conseguir seu intento, Ulisses convence Neoptólemo, um jovem de coração nobre e repleto de honra e bons princípios, a enganar o velho Filoctetes, dizendo-se inimigo dele, Ulisses, no intuito de angariar a simpatia do execrado herói e usurpar-lhe as armas divinas.

Os leitores modernos de Filoctetes são levados diretamente a uma interpretação da tragédia à luz das questões éticas nela envolvidas: Filoctetes é o herói esquecido depois de tantos serviços prestados por conta de se tornar indesejável, inútil para os propósitos maiores do Estado, que por sua condição desperta piedade mas, ao mesmo tempo, teve o coração endurecido pelo rancor e tornou-se intransigente pelo próprio passar dos anos; Ulisses, de certo modo, parece retratar o poder constituído, que usa de todos os meios para atingir seus fins, ainda que isso aconteça por estratagemas cheios de torpeza e covardia, que procura disfarçar sob o nome de astúcia; Neoptólemo, por sua vez, é o vigor da juventude, ávido pela glória e pela fama, que carrega a honra e o sentimento do direito dentro de si mas é levado a agir contra a sua consciência por força dos desejos de uma instância maior de poder, convencido de que sua ação menos nobre será necessária para a consolidação do bem comum.

Na peça teatral de Sófocles, Neoptólemo engana Filoctetes, dizendo-se um inimigo de Ulisses e recebendo, por conta da amizade que o velho nutria pelo pai do rapaz, o nobre Aquiles, as armas de Héracles para com elas combater o herói desafeto dos dois. Contudo, Neoptólemo, que já no início da trama, ao receber a incumbência de Ulisses, reage negativamente à proposta de mentir para obter o que queria, no que é retrucado por seu líder, que diz ser a mentira uma arma válida quando se age para o nosso interesse.

FiloctetesQuais são os limites da conduta ética na política? Parece-nos que esta pergunta move-se nas mentes humanas desde os primórdios de nossa história. Ela está presente nessa tragédia tardia de Sófocles, uma das últimas por ele produzidas, já em sua velhice, e também está ali contida nas falas dos intelectuais que justificaram há alguns anos os escândalos que envolveram o partido governista e seu candidato à reeleição presidencial - bem como nas ações dos homens públicos que eles buscaram louvar com suas palavras diversionárias. A diferença está no pensamento dos nossos artistas e pensadores - um deles declarou, à época, que "não se faz política sem enfiar a mão em sujeira", outro disse mesmo que "a ética não é importante, quando os fins são nobres" - e naquele expresso por Sófocles como finalidade educativa de sua tragédia. Em Filoctetes, depois de revelar ao personagem-título a mentira que lhe contara, tendo já recebido do velho as armas lendárias de Héracles com as quais venceria Tróia, e convencido por Ulisses a abandonar naquela ilha a Filoctetes, o jovem Neoptólemo retorna ao encontro do amigo de seu pai e dá-se um final conciliatório para a situação trágica: surge o próprio Héracles, que promete a Filoctetes sua cura ao tempo que lhe ordena que acompanhe Neoptólemo até Tróia, já que ambos precisavam um do outro para que acontecesse a vitória e fossem cumpridos os interesses da coletividade e o destino daquela cidade. Os meios escusos de Ulisses, a sua astúcia tão presente já na Odisséia, mostrou-se desnecessária diante de outros valores maiores como a honra, o compromisso com a verdade, a piedade e a compaixão - em outras palavras, a empatia para com o semelhante e a máxima de não impor ao outro uma dor que a si mesmo não se entregue.

Os fins, por mais nobres que possam parecer, jamais podem justificar a torpeza de certos meios usados pelos que se valem dessa filosofia tão afeita aos ditadores e déspotas ao longo da história dos homens. O dramaturgo de Epidauro, por meio de seu talento na composição da tragédia, deixou aos seus contemporâneos a mensagem de que jovens e velhos, juventude e tradição, precisavam unir-se para que se cumprissem os desígnios de Atenas, mesmo sob o domínio de uma casta despótica como era o Partido Aristocrático que ascendeu ao poder durante os difíceis anos da Guerra do Peloponeso. Diante dos desmandos que atualmente vivemos em nosso país, a mensagem de Sófocles parece mais atual e necessária que nunca.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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