por Gabriela Silva
Nelson Rego |
Daimon junto à porta é o
nome do conjunto de contos escrito por Nelson Rego, um nome a ser lembrado: o
livro foi escolhido como o Melhor Livro na categoria conto, pelo júri do Prêmio
Açorianos 2011, também segunda colocação no Prêmio Sofia de Literatura 2012 e no Prêmio Maíra de
Literatura 2012. Justo, e explicamos. Desde a
primeira página o autor percorre diferentes âmbitos, com histórias diversas em
que perpassam um sentido obscuro mas identificável pelo leitor.
A
primeira história é “Platero e o mar”, em que arte, sexualidade e sedução
convivem com jovens e uma artista e uma arquiteta. Inocência e Lara contracenam
com o narrador, que, com olhos delicadamente observadores, percebe todas as
nuances dos acontecimentos ao seu redor. Inocência é a alegoria sobre seu
próprio nome, assim como os deuses eram nomeados e correspondiam ao que
“controlavam” ou representavam.
A
capacidade de falar com os mortos é o tema de “Recital dos mortos”. Seu Seis,
personagem apresentado pela narradora, é um homem que, frequentando uma casa de
médiuns, começa a falar com os mortos. Enuncia listas enormes de mortos e das
formas como morreram. As listas eram tão grandes quanto às filas que se formavam
em torno da casa, filas de pessoas desesperadas por uma notícia de seus mortos.
Mas não é apenas Seu Seis que ouve os mortos. Alguém mais vê, ouve e pode
entender o que se passa. Até mesmo descobrir que o velho não é apenas um canal
de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
“É
pesado esse balde, Chica” provoca o leitor com a sensação do acaso, dos
estranhos acontecimentos que provocam nosso conhecimento. Uma menina que busca
água todos os dias, num poço distante da casa da avó, é abordada por um homem
misterioso, que entabula uma conversa repetitiva e confusa. O caminho desviado,
o caminhante sinistro que atravessa o caminho do homem e da menina e a chegada
à casa da avó, são os pontos de ancoragem do conto.
O
cotidiano de um casal é mostrado no conto “2.222 cisnes brincando de locomotiva
e vagões”. Já no título o conto mostra seu tema: o encadeamento de dois seres,
a persecutória convivência no casal que dorme abraçado, o desejo que sendo
instinto deixa de lado as convenções.
Por
sua vez, “A tecelagem do mal” apresenta um casal nada convencional. Um padre
chamado ao exercício do exorcismo é envolvido por uma criatura sinistra, nem
por isso pouco bela, que lhe aparece no meio do caminho, depois de uma sessão
de exorcismo. Ela torna-se sua companheira e “tece” em seu ventre uma filha.
Que
tal um diálogo non sense entre duas
personagens que apresentam a história de uma terceira? É o que acontece em “Na
verdade é isso aí, ó”. O conto é a conversa entre dois amigos sobre uma mulher
e a total inaptidão de aprender um idioma. Após percorrer diversos lugares,
deixar o filho para adoção e trabalhar como doméstica, a mulher é vista por um
dos rapazes como alguém muito interessante. Os sonhos da imigrante são
permeados de símbolos que, segundo ele, renderiam um excelente filme.
E
lembrando Jorge Luís Borges, o autor no leva a um obscuro bar chamado Nihil, no conto que leva o mesmo
nome. Depois de um dia de trabalho, um
homem se depara consigo mesmo e diversas sombras ao visitar o bar. Um lugar que
ele estivera à procura a vida toda.
A
dicotomia entre juventude e velhice é o que conta a narrativa “Permanecendo” em
que uma modelo absorve a arte e torna-se parte dela.
Frases
filosóficas perdidas na praia são o mote do diálogo entre as personagens de “A
boca do jarro”: uma bela jovem e um velho filósofo. Discutem-se questões sobre
a existência, a casualidade e a inconstância dos acontecimentos.
“Um
pedacinho do tempo diante dos olhos” é a história que fecha o livro. Retomando
as personagens da primeira narrativa, “Platero e o mar”, o narrador agora nos
fala da fotógrafa Elena Inéz, e de suas fotografias permeadas de circularidade
e vida. A relação entre o narrador e Inocência e a sexualidade mediada pela
fotógrafa, como objeto de representação, são os alicerces do conto.
Essas
são as histórias que compõem Daimon junto
à porta. Um conjunto de contos marcados pela diversidade de suas
focalizações, pela capacidade de oferecer ao leitor o mergulho por universos
complexos engendrados por seus protagonistas. Na contracapa do livro
encontramos a explicação para dâimon:
“é a potência para se perseguir o que faz falta”, definição já existente desde
os gregos antigos. E é o que fazem as personagens de cada conto que compõe a
obra: buscam amor, explicações, inocência, luxúria, desejo, negação, sabedoria
e, acima de tudo, a essência da vida.
*Gabriela Silva é doutora em Letras pela PUCRS, professora de Literatura e ensaísta. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos e do Sarau das Seis.
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