O bibliófilo e o fim do livro
O bibliófilo não tem medo nem da Internet, nem dos CD–ROM nem dos e-book. Na Internet ele já encontra os catálogos de antiquários, nos CD-ROM as obras que um particular dificilmente poderia ter em casa, como os 221 volumes in-fólio da Patrologia Latina de Migne, num e-book estaria super disposto a circular por aí com bibliografias e catálogos, tendo sempre consigo um repertório precioso, especialmente se e quando visita uma feira do livro antiga. Quanto ao resto, confia em que, até se os livros desaparecessem, sua coleção simplesmente duplicaria, que digo, decuplicaria de valor. Portanto, pereat mundus!
Mas o bibliófilo também sabe que o livro terá longa vida, e percebe isso justamente ao examinar com olhos amorosos as próprias estantes. Se tivesse sido gravada, desde os tempos de Gutemberg, em suporte magnético, toda aquela informação que ele acumulou teria conseguido sobreviver por duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos, quinhentos e cinquenta anos? E teria sido transmitida antes de nós, com os conteúdos das obras, as marcas de quem as tocou, compulsou, anotou, atormentou e muitas vezes, sujou com impressões de polegar? E alguém poderia apaixonar-se por um disquete como se apaixona por uma página branca e dura, que faz crac-crac sob os dedos como se acabasse de sair da prensa?
O bibliófilo não tem medo nem da Internet, nem dos CD–ROM nem dos e-book. Na Internet ele já encontra os catálogos de antiquários, nos CD-ROM as obras que um particular dificilmente poderia ter em casa, como os 221 volumes in-fólio da Patrologia Latina de Migne, num e-book estaria super disposto a circular por aí com bibliografias e catálogos, tendo sempre consigo um repertório precioso, especialmente se e quando visita uma feira do livro antiga. Quanto ao resto, confia em que, até se os livros desaparecessem, sua coleção simplesmente duplicaria, que digo, decuplicaria de valor. Portanto, pereat mundus!
Mas o bibliófilo também sabe que o livro terá longa vida, e percebe isso justamente ao examinar com olhos amorosos as próprias estantes. Se tivesse sido gravada, desde os tempos de Gutemberg, em suporte magnético, toda aquela informação que ele acumulou teria conseguido sobreviver por duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos, quinhentos e cinquenta anos? E teria sido transmitida antes de nós, com os conteúdos das obras, as marcas de quem as tocou, compulsou, anotou, atormentou e muitas vezes, sujou com impressões de polegar? E alguém poderia apaixonar-se por um disquete como se apaixona por uma página branca e dura, que faz crac-crac sob os dedos como se acabasse de sair da prensa?
Como é belo um livro, que foi pensado para ser tomado nas mãos, até na cama, até num barco, até onde não existem tomadas elétricas, até onde e quando qualquer bateria se descarregou e suporta marcadores e cantos dobrados, e pode ser derrubado no chão ou abandonado sobre o peito ou sobre os joelhos quando a gente cai no sono, e fica no bolso, e se consome, registra a intensidade, a assiduidade ou a regularidade das nossas leituras, e nos recorda (se parecer muito fresco ou intonso) que ainda não o lemos...
A forma-livro é determinada pela nossa anatomia. Podem existir os enormes, mas estes em sua maioria têm função de documento ou de decoração; o livro-padrão não deve ser menor que um maço de cigarros ou maior que um tabloide. Depende das dimensões da nossa mão, e estas – ao menos por enquanto – não mudaram, queira ou não queira Bill Gates.
Função do bibliófilo é também aquela, para além da satisfação pessoal do seu desejo privado, de testemunhar sobre o passado e o futuro do livro. Lembro-me do primeiro salão do livro de Turim, quando reservaram ao livro antigo um grande corredor (depois, creio que este belo hábito se perdeu). Visitavam a mostra os jovens das escolas, e alguns eu vi grudados às vitrines para descobrir pela primeira vez o que era um livro de verdade, não um fascículo descartável qualquer, um livro com todos os seus atributos no lugar certo. Eles me lembraram o bárbaro de Borges, quando vê pela primeira vez a obra prima da arte humana que é uma cidade. Este havia caído de joelhos diante de Ravenna , e se fizera romano. Eu me contentaria se os jovens de Turim tivessem levado para casa pelo menos uma emoção, talvez até uma broca benéfica.
Ah, eu ia esquecendo: também as brocas fazem parte da paixão do bibliófilo. Nem todas desvalorizam o livro. Algumas, quando não afetam o texto, parecem uma delicada renda. Eu, hoje confesso, também gosto delas. Naturalmente, ao livreiro que me vende o livro manifesto desprezo e nojo, para baixar o preço. Mas já disse aos senhores: por amor a um belo livro a gente se dispõe a qualquer baixeza.
Texto extraído do livro Memória Digital, de Umberto Eco. Rio de Janeiro: Record, 2010. Páginas 53 – 55. É trecho de um opúsculo de U. Eco, publicado pelas Edizione Rovello em 2001.
Em Umberto Eco ainda se pode encontrar a lucidez da humanidade. Esse pequeno trecho é exemplar: para quem confunde sabedoria com esperteza, aqui reside a sabedoria.
ResponderExcluirTexto rico, com a sabedoria própria de mestre como Umberto Eco!
ResponderExcluirE vamos Ousar Saber!