por Gabriela Silva
Daniela Langer |
No
inferno é sempre assim- e outras histórias longe do céu, é o nome da
coletânea de contos de Daniela Langer. O livro se divide em duas partes:
“histórias longe do céu” e “no inferno é sempre assim”, num total de onze
narrativas. A obra foi escolhida como primeiro lugar do Prêmio Maíra de
Literatura 2012.
“Morrente”
é a primeira história, uma pequena profecia: um dia a rotina tomara conta da
vida de um casal, nas suas ações, nos seus objetos e fatidicamente nos seus
sentimentos.
“Às
moscas” é uma narrativa sobre a miserável existência de um homem. Tendo como
epígrafe o poema “O bicho” de Manuel Bandeira, o conto mostra a desfavorável
luta de um homem faminto com a imagem de uma mosca numa vitrine de doces. À
mosca, a fartura; ao homem, a fome corroedora até do juízo.
Dedicado
a Caio Fernando Abreu, o conto “para alguém que viu partindo” é sobre a relação
de isolamento e necessidade que vivem duas pessoas num relacionamento. Entre os
desejos impostos pela vontade humana e a fragilidade de um indivíduo frente ao
outro, despem-se as mais singelas intenções.
E
um leitor de Cortázar não deixa de sorrir ao começar a leitura de “como que
fora do tempo”, quarta narrativa da primeira parte do livro. Uma lembrança que se desenrola como uma casca
de pêssego; no caldo da fruta, o fantástico de Wells e Lugones. Imagens que se
complementam como num sonho exótico em fragmentos de tempo que abrangem anos ou
apenas o curto momento de acendimento de um fósforo.
Morte,
memória, medo e reflexo são as ideias centrais do conto “das horas que se
derramam”. O protagonista encontra no reflexo de um vidro a memória que se
estende até a morte da mãe. O percurso
pela casa vazia é a distância entre o hoje e a juventude.
“Em
todas as portas” é um conto sobre o fim. Um relacionamento que é terminado por
telefone, a necessidade da busca de explicações, o passado desbotado, o corpo
tentando acompanhar a mente que rápida busca em seus arquivos as exigidas
justificativas que o abandonado precisa. Ruas, sons, cheiros, cores e pessoas.
A nitidez perdida ao desenfreado passo para algum lugar.
A
segunda parte da obra é composta por cinco narrativas, começa com a história de
Marianna, uma menina que vive uma adolescência do modo mais tranquilo possível:
verão com a família, na praia, brincando com as amigas e aproveitando os dias
de sol e chuva que compõem a vida. A chegada do primo Lucas, com seus cabelos
revoltos e o dragão tatuado nas costas, é que muda a atmosfera da temporada de
estio. Descobriu-se apaixonada; primeiro, pela chegada do primo que ela havia
visto poucas vezes. Depois, pelo primo, pela beleza, pela ideia toda que era
ele. Mas como a morte é irmã do sono, num sonho de mar e sol, o primo era
jogado à areia pelas mãos de outros que o tentaram salvar, “lambido de sol”
jazia o primo e seu dragão à beira do verão de Marianna. É essa a história
contada em “primo Lucas”.
“No
fundo das metáforas” é um conto sobre todas as coisas que pensamos ser de um
modo, ditas de outro e vividas de uma terceira e inusitada maneira. Um jogo de
futebol, uma chuva que enlameia tudo e um bando de meninos que para se
distraírem não se importam de encharcar as roupas e voltar espirrando pra casa.
Mas entre um chute e uma goleira, entre uma chuteira e a poça de água da chuva
o mundo e o tempo correm a desgosto da vontade da gente.
“No
inferno é sempre assim” é uma narrativa permeada de uma tristeza que não se
dissolve: um menino e os enganos de um dia quente de verão. O cotidiano
inexpressivo e a vontade amarga de vender todos os doces da caixa que carregava
consigo é o que move o protagonista ao desfecho do conto, que justifica em cada
palavra seu titulo.
Imagens
que quase podemos tocar é uma boa definição para o conto “a metade do um”.
Nele, a construção narrativa não é apenas densa como engendramento de personagens
e de ações, mas como espaço físico. Uma fotografia em que as cores e as
sensações de corpos e temperaturas são construídas como se pudessem interagir
com o leitor.
A
dor e o prazer de encontrar alguém que há tempos não víamos. A estranheza de encontrar
por acaso alguém que deixamos não por acaso, mas com toda a certeza da ausência
e do adeus. Perceber seu rosto e exercitar a arqueologia em suas rugas e no que
o tempo gravou na pele. Essas ações compõem o quadro do conto “A arqueologia
das práticas” em que duas personagens se encontram num supermercado em gôndolas
de frutas e gavetas de memória.
O
que torna esse livro tão interessante e reconhecido? Uma particularidade
que é também virtude: o poder da construção de imagens, de símbolos. Daniela
Langer cria um universo particular de metáforas, de
antessalas de referências, de preferências de leitura e de criação. É seu
gênero escolhido o conto, é sua qualidade estética o imagético engendramento de
seres e ambientes, de vidas e mortes que ela oferece ao leitor. Cada fragmento
de texto criado pela autora é único, seja na escolha verbal apurada, repleta de
delicadezas, mesmo quando se refere a dor, a miséria e a morte, ou ainda nas
estratégicas imagens que elabora e que ficam reverberando na mente do leitor.
*Gabriela Silva é doutora em Letras pela PUCRS, professora de Literatura e ensaísta. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos e do Sarau das Seis.
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