quinta-feira, 6 de novembro de 2014

PRATA DA CASA: Segredo

por Luís Edegar Costa 




Estava tudo cheio de pó, mas igualzinho. Cinco anos depois, a mesma arrumação do quarto que ela escolheu para os nossos encontros. No canto de sempre, a gaiola branca com as andorinhas de porcelana e suas asas abertas amarradas por fios de nylon. Eu lembro bem do dia em que ela pendurou a gaiola, sem a minha ajuda, logo que escolhemos o lugar. Orgulhosa, queria mostrar felicidade pela vida que acreditava em transformação. Comprara a gaiola numa loja de usados. Era para ser uma surpresa. E foi. Aproveitei a chance e não escondi o meu desprezo. Decoração de puta, eu pensei, mas não disse. Nem precisei. Só que não era. Mesmo assim, fiz uma cara! Era obrigatório deixar bem claro que nada mudaria. Enquanto eu recordava essas tentativas de educação amorosa, sem arrependimento, a armação em ogiva da pequena jaula, opaca, avisava a escassa claridade que se ia com o fim da tarde. Eu precisava recordar, tinha pressa. Logo estaria escuro e eu não veria mais a cama coberta pela colcha em matelassê, bordada com a imagem de um casal num piquenique e que trazia bem no centro uma cesta de frutas transbordando. Tampouco o biombo decorado com o desenho de uma mulher nua segurando um unicórnio pelo chifre. Tudo para ela tinha de ter uma figura, uma imagem . Tudo era exagero. Como ela conseguia passar tanto tempo nesse quarto? Era para ser uma peça de pudor, o tal biombo, para ela se trocar sem eu ver. Foi levado pra lá contra a minha vontade. Vergonha fajuta dessa sonhadora tola. Pra quê um biombo? Tudo o que ela queria era se afastar da vida anterior, bem sei, pelo menos enquanto estivesse ali. Ela é que não sabia como e a mobília, escolhida a dedo, dizia tudo. Liso mesmo, sem estampa, só o abajur de cetim amarelo-cobre que ela inventou como peça de família. O que sei é que quando aceso iluminava o corpo dela com uma maciez que me enlouquecia. Punha chama na nossa cama, nua da colcha, estreita e de madeira sem lustro. Coisa do demônio esse abajur. Amar? Eu lá tinha tempo pra isso. Meu negócio com ela era outro. Nem por isso deixava de criticar. Censurava sem economia. Desse jeito ela ficava mais submissa, se sentia diminuída, humilhada. Não sei por que não reagia. A vida toda fora assim. Eu pressentia e não afrouxava. Assim ela se entregava como se eu fosse dono, podia fazer com ela o que quisesse. A mesa de cabeceira era uma só, bem simples, para não ofuscar o troféu, era assim que parecia o abajur. Tinha uma gaveta onde guardávamos as camisinhas e ela um sapatinho de criança, um tênis que cabia na palma da mão. Nunca entendi pra quê. Também nunca perguntei. Ela ia contar uma história triste porque pra mim parecia coisa de defunto. Era coisa dela, essas invenções. A cômoda laqueada, também de segunda mão, era mais um item dessa imaginação. Eu não queria, não havia roupas, aquele era um quarto de encontros, nossos encontros. Parei por último nela, antes de sair, aproveitando o restinho de luz. Mesmo contrariado, era a única peça que eu gostava de fato. Ela escolheu por causa da pintura e dos puxadores em forma de pingentes, vitrificados. Não eram de bom gosto. Mas eram do meu agrado. Combinavam com o revestimento e sempre me pareceram lágrimas congeladas, os puxadores. Ela dizia que não, que lembravam uma música que a mãe ouvia para se emocionar, para se livrar de uma dor que não tinha cura. No fundo concordava comigo, eram lágrimas quando seus olhos vítreos e alheios se detinham neles, invariavelmente, quando eu já me vestia para ir embora. Do que ela tinha saudade? Agora, quase noite, nada mais tinha importância, tudo era vulto, tudo desaparecia. Sem pressa, caminhei em direção à porta, sentido o chão de madeira cheia de estrias, que pareciam mais abertas e profundas diante de todo o resto imobilizado. Todos os vestígios do nosso segredo, sem vida. 



Na seção PRATA DA CASA, publicaremos semanalmente textos escritos pelos alunos das diversas oficinas literárias ministradas na Sapere Aude! Livros. O texto de hoje é de Luís Edegar Costa, ex-aluno da Oficina de Iniciação à Criação Literária do professor Robertson Frizero. Quer conhecer mais sobre nossas oficinas literárias? Acesse: http://oficinasliterarias.wordpress.com

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