segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Lendo Fantasia: A MATRIZ DE MATRIX

Cover of "Total Recall"
Total Recall
por Patrícia Degani

Is this the real life? Is this just fantasy?
(Queen, Bohemian Rapsody, 1975, do álbum A Night at the Opera

 Um dos temas mais perturbadores da literatura fantástica é a possibilidade de que nossa vida não seja real - que tudo não passe de um sonho ou simulacro. Um dos principais escritores do gênero que exploram essa possibilidade é Philip K. Dick. Um exemplo é o filme O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990, Paul Verhoeven), baseado no seu conto We Can Remember It for You Wholesale. No filme original, estrelado por Arnold Schwarzenegger, um operário decide fazer um implante de memória para escapar da rotina. Em nenhum momento do filme sabemos se o implante funcionou ou não, se a seqüência de eventos se passa na mente do protagonista ou de fato aconteceu. 

Blade Runner Se considerarmos que nossas memórias são parte indissociável do nosso eu, como afirmava Santo Agostinho nas Confissões e como tristemente confirmamos ao conhecer alguém que sofre de Alzheimer, não ter certeza de suas memórias tem um efeito devastador na psique. Ora, nossas lembranças são mesmo, em parte, inventadas: são impressões psicológicas profundas geradas por determinados fatos na nossa vida. Se não tivermos outras testemunhas e não pudermos comfrontá-las com registros, como ter certeza da veracidade das nossas recordações? Quantas vezes todos nós já fomos surpreendidos por descobrir que temos uma memória falsa do ponto de vista dos fatos, porém intensamente emocional? Você poderia jurar que usava um casaco rosa quando ganhou aquele presente especial de Natal, mas quando vê a foto no álbum da família, descobre que está de blusão amarelo...entretanto, se soubéssemos que todas nossas recordações não passam de uma ilusão, entraríamos em crise. A possibilidade de forjar uma personalidade com memórias artificiais é retratada nos andróides do filme Blade Runner - O Caçador de Andróides (1982, dirigido por Ridley Scott, baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick). 

Cover of the Brazilian release, depicting the ...E o que dizer dos sonhos? No violento animê O Fantasma do Futuro (Ghost in the Shell - Kôkaku kidôtai, 1995, de Mamoru Oshii) uma policial andróide enfrenta um perigoso criminoso com o sugestivo nome de Puppet Master (Titereiro, ou mestre das marionetes). Se as memórias são fabricadas, podem ser construídas por um terceiro que nos manipularia como marionetes. Futuros distópicos com interações homem/máquina nas quais não se sabe mais quem é o quê são recorrentes na literatura chamada de cyberpunk. O principal livro do gênero é Neuromancer de William Gibson, publicado em 1984. O romance é escrito em uma linguagem cheia de gírias futurísticas, na tradição de A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1962, Anthony Burgess).  Em Neuromancer o hacker Henry Dorsett Case é pego roubando de seu empregador, que se vinga afetando o seu sistema nervoso central e o impedindo de continuar a se conectar na Matrix, rede social e de internet na qual todos interagem no futuro. Henry Case envolve-se em um trabalho clandestino para conseguir a cura e um novo pâncreas, estragado pelo uso de drogas. A missão o envolve com duas Inteligências Artificiais (AI), Wintermute e Neuromancer. Consciências podem ser copiadas para a Matrix por Neuromancer, e passam a ter uma existência puramente virtual.

Cover of Em 1988, saiu o filme Cidade das Sombras (Dark City, 1988, de Alex Proyas). Esteticamente, Dark City faz uma homenagem aos filmes do expressionismo alemão como O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920, Robert Wiene) e Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922, F. W. Murnau). O espectador começa a ver um filme que, aparentemente, se passa na década de 30, até uma reviravolta espetacular, principalmente quando assistida na tela grande do cinema. Explorando uma temática parecida, em 1999 foi lançado o filme 13. Andar (The Thirteenth Floor, 1999, de Josef Rusnak). Mortes misteriosas começam a acontecer em uma firma que está criando um jogo em realidade virtual imersiva. Para jogar, é preciso ligar sua consciência à máquina e "vestir" a aparência de um dos personagens. O protagonista, Douglas Hall, começa a investigar o mistério e tem uma revelação inesperada. O filme é baseado no romance Simulacron-3, 1964, de Daniel F. Galouye.
poster for The Matrix 
No mesmo ano, mas mais tarde, foi lançado o filme Matrix (1999, irmãos Wachowski), combinando elementos do cyberpunk e de todos esses antecedentes. O mix dos irmãos Wachowski provou ser empolgante, porém de fôlego curto nas continuações. Sem ter planejado uma trilogia desde o início, os seguintes Matrix Revolutions e Matrix Reloaded não conseguiram corresponder à expectativa. O principal problema foi a indefinição de gênero. Quando Neo em Matrix Revolutions consegue manipular a "realidade", desconfia-se de um efeito "bonecas russas": aquela ainda não é a realidade, ele apenas saiu de uma simulação para cair em outra. Qualquer explicação que os diretores dessem deveria levar em conta que a premissa do primeiro filme era a de uma película de ficção "científica" (com uma certa liberdade em relação às Leis da Termodinâmica, mas ainda assim). Os protagonistas não deveriam ter poderes mágicos; eles são hackers do sistema da Matrix. Se a outra realidade também é manipulável, ela também deveria ser uma Matrix. Um sistema de magia implica na existência de um mundo sobrenatural, e isso não está na premissa de um mundo cyberpunk

Cover of
Com uma trama melhor resolvida é o animê Paprika (Papurika, 2006, Satoshi Kon). Nesse desenho, um time de cientistas é capaz de entrar nos sonhos de terceiros como um novo tipo de terapia psicoterápica. No entanto, alguém começa a usar o sistema para manipular e enlouquecer as pessoas e a protagonista precisa encontrar o responsável antes que haja mais vítimas. Quatro anos mais tarde saiu o filme A Origem (Inception, 2010, Christopher Nolan), também falando de sonhos dentro de sonhos e a dificuldade de saber o que é real e o que é sonho.

Os autores de Ficção Científica costumam explorar mais esses conceitos do que os de Fantasia, uma vez que a explicação para o que está acontecendo costuma envolver tecnologia e não metafísica. Uma exceção é o filme Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, 2011, George Nolfi), também baseado na obra de Philip K. Dick, The Adjustment Group. No filme, o político David encontra a bailarina Elise em um banheiro masculino (isso mesmo), porém ao tentar se aproximar da moça começa a esbarrar em estranhos obstáculos. O filme é bom (o final poderia ser melhor) e bem construído, com uma explicação mais sobrenatural do que científica, o que o torna difícil de ser classificado. Como o leitor que me seguiu até aqui observou, por mais que um tema já tenha sido tratado por filmes e livros, sempre é possível criar algo novo e interessante. Um escritor não precisa de uma história que nunca foi contada, mas sim de uma abordagem nova. Espero ter dado dicas de bons filmes e boas leituras para os amantes do gênero. Até a próxima!
Águia

 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos.

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