sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

VOCÊ SABE?!?... Os escritores e seus gatos – Parte II – “uma aliança entre seres livres”.

por Mires Batista Bender

Os gatos são conhecidos por sua autonomia. Eles escolhem a quem amar sem levar em conta a atenção que recebem e adquirem hábitos de higiene pessoal sem que seja preciso “levá-los lá fora” para que se sintam confortáveis. Em testemunhos de escritores encontramos relatos sobre essa independência. De acordo com o “best-seller” argentino Osvaldo Soriano “no es posible usar al gato para nada personal, no hay manera de privatizarlos". Na trilha do musical de Chico Buarque de Hollanda, os gatos proclamam sua autossuficiência em versos bem humorados: “Nós, gatos, já nascemos pobres/ Porém, já nascemos livres/ Senhor, senhora ou senhorio/ Felino, não reconhecerás”. Mesmo o mais rabugento dos escritores, o “pai dos beatniks” William Burroughs, conhecido pela verve sarcástica, mostra o seu lado doce e sentimental revelando, no livro O gato por dentro, que os gatos podem ser excelentes espelhos da condição humana. Para ele, até mesmo a fúria de um gato pode ser bela.


Para Winifred Carriere (autor de Cats 24 Hours a Day e de Cats: a Practical Guide for Cat Owners), “o gato é o espelho da mente do ser humano, da personalidade e atitudes de seu dono; da mesma maneira que o cachorro reflete a aparência física do dono”. A opinião do escritor pode ser científicamente provada. Uma equipe de pesquisadores da Universidade do Texas realizou uma pesquisa entre quatro mil e quinhentas pessoas, buscando identificar traços típicos, de acordo com sua preferência por cães ou gatos. Para os pesquisadores, a preferência pode ser um indicador de sua personalidade. Segundo os resultados alcançados pela pesquisa, as pessoas que gostam mais de gatos, tendem a ser mais introspectivas, porém, possuem maior facilidade de adaptação, pois são vanguardistas e aceitam ideias novas de forma mais rápida. Já os apreciadores de cães, tendem a ser mais extrovertidos, sociáveis.


Dizem que, para se gostar de gatos, é preciso ter a alma livre, sem a pretensão de querer dominar sempre. De acordo com o escritor Jorge Luis Borges, o escritor é um anarquista – no sentido lato da palavra – não costuma ter horário para trabalhar e sua tarefa raramente é realizada por encomenda. Ou seja, faz o que quer. O mesmo acontece com os gatos. Para Borges, a relação entre escritores e gatos é uma aliança entre seres livres.


Os gatos são independentes e nada oportunistas. Eles recorrem aos próprios meios e buscam seu alimento, quando não lhe é dado o que comer. Um felino escolhe seu dono e para atrair a atenção de um gatinho não basta um “vem cá, bichano”. Ele precisa de seu tempo para decidir se gosta de alguém. Porém, depois de conquistada sua amizade será amigo para sempre.


Os gatos parecem ser a companhia ideal para os escritores. A eles são dedicadas diversas publicações todos os anos. Em algumas delas, encontramos frases e versos notáveis. Sobre uma personagem gato citou – em A disciplina do amor – a escritora Lygia Fagundes Telles: Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende, mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.”



Diversos autores parecem concordar com as semelhanças entre os escritores e os gatos. Alguns até lhes atribuem atitude de escritor. Segundo Amanda Costa “gatos escrevem por telepatia...”. Bem, para por um ponto final sobre a questão, disse Aldous Huxley: “Se quiser escrever, arranje um gato”.

SE VOCÊ GOSTOU DESTE TEXTO, VAI ADORAR CONHECER TAMBÉM A OS ESCRITORES PREFEREM OS GATOS, PUBLICADA EM MAIO DE 2014. 



* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: FELICIDADE EM VINTE VEZES SEM JUROS

por Nurit Gil

 Sou uma entusiasta do capitalismo, entendam bem. Mas realmente a extravagância saiu do controle, em minha não tão humilde opinião.
O mercado de clichês - ops, de casamentos - por exemplo:
- Ana, quer casar comigo?
(Ajoelha-se, abrindo um anel de muitos quilates parcelado em 85 anos)
- Sim, Adalberto, sim, mil vezes sim!
(Choro)
Pronto. Tudo acontecido conforme o protocolo por ambos no pré-enlace, prosseguem com o planejamento.
- Tulipas brancas.
- Em todas as mesas?
- Sim, e no palco.
- Mas e o orçamento?
- Adalberto, sonho com este dia desde a minha primeira infância
- Até com as tulipas?
- Brancas.
Nada que não se possa parcelar em mais alguns anos. Juntamente à banda de vinte integrantes, show de escola de samba, vestido da noiva, cortejo e daminhas, comida para quinhentos convidados, móveis de design, pufs descontraídos, brigadeiros gourmet, picolé da moda, havaianas (as legítimas) e bar de caipirinha. 
- O que? Você quer que tenha um massagista no banheiro?
- No casamento da Júlia teve.
- Pirou?
- Lembra? Meu sonho...
As feiras de casamento estão aí para mostrar que isso é um pacote extravagante de tem-que-ter - delírios included - sem o qual, desculpe, você não será feliz para sempre. Então bora hipotecar os primeiros vinte anos da vida a dois.
Repito quantas vezes forem necessárias: faço parte do fã clube do capitalismo. Mas ando incomodada com esta felicidade meio pasteurizada. Ser feliz para sempre tem a ver com mãos dadas, olhar nos olhos e rir da piada do outro, mesmo que menos por graça e mais por amor. O pacote pelo qual pode-se pagar, sinto muito, é delírio sem garantia de nada...
- Estava lindo o casamento, né?
- Sei lá, achei meio estranho o gosto do bem-casado trufado
.... Nem do dinheiro de volta.


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil lançou recentemente seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, pela Buqui editora.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Lendo Fantasia: A MATRIZ DE MATRIX

Cover of "Total Recall"
Total Recall
por Patrícia Degani

Is this the real life? Is this just fantasy?
(Queen, Bohemian Rapsody, 1975, do álbum A Night at the Opera

 Um dos temas mais perturbadores da literatura fantástica é a possibilidade de que nossa vida não seja real - que tudo não passe de um sonho ou simulacro. Um dos principais escritores do gênero que exploram essa possibilidade é Philip K. Dick. Um exemplo é o filme O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990, Paul Verhoeven), baseado no seu conto We Can Remember It for You Wholesale. No filme original, estrelado por Arnold Schwarzenegger, um operário decide fazer um implante de memória para escapar da rotina. Em nenhum momento do filme sabemos se o implante funcionou ou não, se a seqüência de eventos se passa na mente do protagonista ou de fato aconteceu. 

Blade Runner Se considerarmos que nossas memórias são parte indissociável do nosso eu, como afirmava Santo Agostinho nas Confissões e como tristemente confirmamos ao conhecer alguém que sofre de Alzheimer, não ter certeza de suas memórias tem um efeito devastador na psique. Ora, nossas lembranças são mesmo, em parte, inventadas: são impressões psicológicas profundas geradas por determinados fatos na nossa vida. Se não tivermos outras testemunhas e não pudermos comfrontá-las com registros, como ter certeza da veracidade das nossas recordações? Quantas vezes todos nós já fomos surpreendidos por descobrir que temos uma memória falsa do ponto de vista dos fatos, porém intensamente emocional? Você poderia jurar que usava um casaco rosa quando ganhou aquele presente especial de Natal, mas quando vê a foto no álbum da família, descobre que está de blusão amarelo...entretanto, se soubéssemos que todas nossas recordações não passam de uma ilusão, entraríamos em crise. A possibilidade de forjar uma personalidade com memórias artificiais é retratada nos andróides do filme Blade Runner - O Caçador de Andróides (1982, dirigido por Ridley Scott, baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick). 

Cover of the Brazilian release, depicting the ...E o que dizer dos sonhos? No violento animê O Fantasma do Futuro (Ghost in the Shell - Kôkaku kidôtai, 1995, de Mamoru Oshii) uma policial andróide enfrenta um perigoso criminoso com o sugestivo nome de Puppet Master (Titereiro, ou mestre das marionetes). Se as memórias são fabricadas, podem ser construídas por um terceiro que nos manipularia como marionetes. Futuros distópicos com interações homem/máquina nas quais não se sabe mais quem é o quê são recorrentes na literatura chamada de cyberpunk. O principal livro do gênero é Neuromancer de William Gibson, publicado em 1984. O romance é escrito em uma linguagem cheia de gírias futurísticas, na tradição de A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1962, Anthony Burgess).  Em Neuromancer o hacker Henry Dorsett Case é pego roubando de seu empregador, que se vinga afetando o seu sistema nervoso central e o impedindo de continuar a se conectar na Matrix, rede social e de internet na qual todos interagem no futuro. Henry Case envolve-se em um trabalho clandestino para conseguir a cura e um novo pâncreas, estragado pelo uso de drogas. A missão o envolve com duas Inteligências Artificiais (AI), Wintermute e Neuromancer. Consciências podem ser copiadas para a Matrix por Neuromancer, e passam a ter uma existência puramente virtual.

Cover of Em 1988, saiu o filme Cidade das Sombras (Dark City, 1988, de Alex Proyas). Esteticamente, Dark City faz uma homenagem aos filmes do expressionismo alemão como O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920, Robert Wiene) e Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922, F. W. Murnau). O espectador começa a ver um filme que, aparentemente, se passa na década de 30, até uma reviravolta espetacular, principalmente quando assistida na tela grande do cinema. Explorando uma temática parecida, em 1999 foi lançado o filme 13. Andar (The Thirteenth Floor, 1999, de Josef Rusnak). Mortes misteriosas começam a acontecer em uma firma que está criando um jogo em realidade virtual imersiva. Para jogar, é preciso ligar sua consciência à máquina e "vestir" a aparência de um dos personagens. O protagonista, Douglas Hall, começa a investigar o mistério e tem uma revelação inesperada. O filme é baseado no romance Simulacron-3, 1964, de Daniel F. Galouye.
poster for The Matrix 
No mesmo ano, mas mais tarde, foi lançado o filme Matrix (1999, irmãos Wachowski), combinando elementos do cyberpunk e de todos esses antecedentes. O mix dos irmãos Wachowski provou ser empolgante, porém de fôlego curto nas continuações. Sem ter planejado uma trilogia desde o início, os seguintes Matrix Revolutions e Matrix Reloaded não conseguiram corresponder à expectativa. O principal problema foi a indefinição de gênero. Quando Neo em Matrix Revolutions consegue manipular a "realidade", desconfia-se de um efeito "bonecas russas": aquela ainda não é a realidade, ele apenas saiu de uma simulação para cair em outra. Qualquer explicação que os diretores dessem deveria levar em conta que a premissa do primeiro filme era a de uma película de ficção "científica" (com uma certa liberdade em relação às Leis da Termodinâmica, mas ainda assim). Os protagonistas não deveriam ter poderes mágicos; eles são hackers do sistema da Matrix. Se a outra realidade também é manipulável, ela também deveria ser uma Matrix. Um sistema de magia implica na existência de um mundo sobrenatural, e isso não está na premissa de um mundo cyberpunk

Cover of
Com uma trama melhor resolvida é o animê Paprika (Papurika, 2006, Satoshi Kon). Nesse desenho, um time de cientistas é capaz de entrar nos sonhos de terceiros como um novo tipo de terapia psicoterápica. No entanto, alguém começa a usar o sistema para manipular e enlouquecer as pessoas e a protagonista precisa encontrar o responsável antes que haja mais vítimas. Quatro anos mais tarde saiu o filme A Origem (Inception, 2010, Christopher Nolan), também falando de sonhos dentro de sonhos e a dificuldade de saber o que é real e o que é sonho.

Os autores de Ficção Científica costumam explorar mais esses conceitos do que os de Fantasia, uma vez que a explicação para o que está acontecendo costuma envolver tecnologia e não metafísica. Uma exceção é o filme Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, 2011, George Nolfi), também baseado na obra de Philip K. Dick, The Adjustment Group. No filme, o político David encontra a bailarina Elise em um banheiro masculino (isso mesmo), porém ao tentar se aproximar da moça começa a esbarrar em estranhos obstáculos. O filme é bom (o final poderia ser melhor) e bem construído, com uma explicação mais sobrenatural do que científica, o que o torna difícil de ser classificado. Como o leitor que me seguiu até aqui observou, por mais que um tema já tenha sido tratado por filmes e livros, sempre é possível criar algo novo e interessante. Um escritor não precisa de uma história que nunca foi contada, mas sim de uma abordagem nova. Espero ter dado dicas de bons filmes e boas leituras para os amantes do gênero. Até a próxima!
Águia

 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: IDADE: VIDE BULA

por Nurit Gil

Vinte anos. Pode usar mini saia. Decote descuidado é charme. Pode opinar, mas não espere ser levada a sério. Flerte à vontade. Não ceda à primeira cantada. E sem mãos no primeiro encontro. Pode gostar de vampiros. Pode viajar com o namorado (mas deixe o celular ligado). Pode dirigir à noite. Pode ficar doente. Pode beber, você já é maior de idade.

Trinta e cinco anos. Mini saia nesta idade? Amamentar em público é polêmico. Pode opinar. O livro da Encantadora de Bebês é bárbaro. Cinco malas para passar o final de semana fora. Tem café descafeinado? Não pode ficar doente (nem dá tempo). Beber é mau exemplo, tem suquinho na geladeira.

Cinquenta anos. Mini saia é falta de simancol. Decote abusado também. Deve opinar. Pode escolher o canal de televisão. E o filme no cinema. Flerte sem ser vulgar. Ceda à primeira cantada. Sem ser vulgar. Pode viajar com o namorado (e desligar o celular). Não pegue no pé de ninguém. Mas não seja ausente. Pode beber se a bula do remédio permitir.

- Que saco!

- É...

- Essas regras. Deveria ao menos haver uma idade em que tudo fosse permitido.

- Relaxe.

- Não dá pra relaxar.

- Você bebeu demais?

- Talvez.

- Vamos para casa.

- É, acho que não tenho mais idade...


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil lançou recentemente seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, pela Buqui editora.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: INTIMIDADE

por Nurit Gil


Apesar da criação tradicional, Carola não era exatamente pudica. Descobrira até bem cedo as tentações da vida e sucumbira a quase todas elas. 

O primeiro beijo de língua aconteceu enquanto suas amigas ainda tentavam fazer tranças em bonecas. O baseado, o sexo e - por que não - o brigadeiro de panela em madrugada de fossa, todos antes do baile de debutantes do colégio, quando estreou a tatuagem de onça desenhada do pescoço ao cóccix sob o vestido de tafetá decotado. 

Rodou o mundo, namorou, pirou, meditou, experimentou, separou. Repetidas vezes. Sabia que era moderna para os padrões da sociedade e, inclusive, nutria certo orgulho quando referiam-se a ela como uma libertina.

Mas aconteceu de um dia, voltando para casa no final da tarde, parar para observar a loja de colchões que recentemente havia inaugurado em seu bairro. Pé direito duplo, vitrine imensa de vidro, lustre de cristais vermelhos. Coisa fina. Lá dentro, um homem - nem bonito nem feio - parecia explicar para a vendedora o modelo que procurava. Enquanto Carola admirava a parede de tom preto, imaginando se a cor ficaria bem em sua recém reformada sala, a dupla seguiu em direção ao colchão da vitrine. O homem então deitou, virou de um lado, experimentou de outro, ficou de bruços, mexeu o corpo, aconchegou-se em conchinha.

Carola ruborizou. Ela jamais exporia tamanha intimidade. Uma coisa é sair pela rua exibindo sacola de sex shop, meio gosto, meio marketing. Outra, é mostrar-se de verdade para os transeuntes. Dormir é coisa íntima, sinceridade para poucos, sem fingimento, performance ou manual indiano. É você ali, pá, escancarado e sem qualquer filtro.

Tamanho fora seu incômodo, que ela deixou a passos largos a parede preta para trás. Era amor, ela tinha certeza. Trinta segundos de ternura que viraram paixão, que evoluíram para amor. Nunca sentira isso.

No dia seguinte, voltou para a vitrine. Nada. Procurou aquele homem por uma semana. Nem sinal.

Carola ja experimentou de tudo um pouco, mas agora sua busca mudou. Ela quer beijos de bom dia com gosto de café, silêncios que não sejam constrangedores, escovas de dente encostando-se no banheiro, mensagens de amor às duas da tarde e roupa íntima pendurada no box. Alguém que a veja dormindo de meias no inverno, com pijama de algodão, cheiro de sabonete, placa de ATM nos dentes e ressonando de cansaço. De todas as tentações da vida, ainda falta sucumbir a uma delas: dormir de conchinha.

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil está lançando seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, em dois eventos no mês de novembro: na programação da FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE, haverá sessão de autógrafos no dia 15 de novembro, às 18h.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

PRATA DA CASA: Segredo

por Luís Edegar Costa 




Estava tudo cheio de pó, mas igualzinho. Cinco anos depois, a mesma arrumação do quarto que ela escolheu para os nossos encontros. No canto de sempre, a gaiola branca com as andorinhas de porcelana e suas asas abertas amarradas por fios de nylon. Eu lembro bem do dia em que ela pendurou a gaiola, sem a minha ajuda, logo que escolhemos o lugar. Orgulhosa, queria mostrar felicidade pela vida que acreditava em transformação. Comprara a gaiola numa loja de usados. Era para ser uma surpresa. E foi. Aproveitei a chance e não escondi o meu desprezo. Decoração de puta, eu pensei, mas não disse. Nem precisei. Só que não era. Mesmo assim, fiz uma cara! Era obrigatório deixar bem claro que nada mudaria. Enquanto eu recordava essas tentativas de educação amorosa, sem arrependimento, a armação em ogiva da pequena jaula, opaca, avisava a escassa claridade que se ia com o fim da tarde. Eu precisava recordar, tinha pressa. Logo estaria escuro e eu não veria mais a cama coberta pela colcha em matelassê, bordada com a imagem de um casal num piquenique e que trazia bem no centro uma cesta de frutas transbordando. Tampouco o biombo decorado com o desenho de uma mulher nua segurando um unicórnio pelo chifre. Tudo para ela tinha de ter uma figura, uma imagem . Tudo era exagero. Como ela conseguia passar tanto tempo nesse quarto? Era para ser uma peça de pudor, o tal biombo, para ela se trocar sem eu ver. Foi levado pra lá contra a minha vontade. Vergonha fajuta dessa sonhadora tola. Pra quê um biombo? Tudo o que ela queria era se afastar da vida anterior, bem sei, pelo menos enquanto estivesse ali. Ela é que não sabia como e a mobília, escolhida a dedo, dizia tudo. Liso mesmo, sem estampa, só o abajur de cetim amarelo-cobre que ela inventou como peça de família. O que sei é que quando aceso iluminava o corpo dela com uma maciez que me enlouquecia. Punha chama na nossa cama, nua da colcha, estreita e de madeira sem lustro. Coisa do demônio esse abajur. Amar? Eu lá tinha tempo pra isso. Meu negócio com ela era outro. Nem por isso deixava de criticar. Censurava sem economia. Desse jeito ela ficava mais submissa, se sentia diminuída, humilhada. Não sei por que não reagia. A vida toda fora assim. Eu pressentia e não afrouxava. Assim ela se entregava como se eu fosse dono, podia fazer com ela o que quisesse. A mesa de cabeceira era uma só, bem simples, para não ofuscar o troféu, era assim que parecia o abajur. Tinha uma gaveta onde guardávamos as camisinhas e ela um sapatinho de criança, um tênis que cabia na palma da mão. Nunca entendi pra quê. Também nunca perguntei. Ela ia contar uma história triste porque pra mim parecia coisa de defunto. Era coisa dela, essas invenções. A cômoda laqueada, também de segunda mão, era mais um item dessa imaginação. Eu não queria, não havia roupas, aquele era um quarto de encontros, nossos encontros. Parei por último nela, antes de sair, aproveitando o restinho de luz. Mesmo contrariado, era a única peça que eu gostava de fato. Ela escolheu por causa da pintura e dos puxadores em forma de pingentes, vitrificados. Não eram de bom gosto. Mas eram do meu agrado. Combinavam com o revestimento e sempre me pareceram lágrimas congeladas, os puxadores. Ela dizia que não, que lembravam uma música que a mãe ouvia para se emocionar, para se livrar de uma dor que não tinha cura. No fundo concordava comigo, eram lágrimas quando seus olhos vítreos e alheios se detinham neles, invariavelmente, quando eu já me vestia para ir embora. Do que ela tinha saudade? Agora, quase noite, nada mais tinha importância, tudo era vulto, tudo desaparecia. Sem pressa, caminhei em direção à porta, sentido o chão de madeira cheia de estrias, que pareciam mais abertas e profundas diante de todo o resto imobilizado. Todos os vestígios do nosso segredo, sem vida. 



Na seção PRATA DA CASA, publicaremos semanalmente textos escritos pelos alunos das diversas oficinas literárias ministradas na Sapere Aude! Livros. O texto de hoje é de Luís Edegar Costa, ex-aluno da Oficina de Iniciação à Criação Literária do professor Robertson Frizero. Quer conhecer mais sobre nossas oficinas literárias? Acesse: http://oficinasliterarias.wordpress.com

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: TERAPIA DE CASAL

por Nurit Gil .


"A vida é a arte do encontro,
embora haja tanto desencontro pela vida"
(Vinicius de Moraes)

- Boa tarde, eu sou a Dra. Clarissa.
- Olá, Fernanda.
- Prazer, Fábio.
- Por favor, sentem-se. Falem um pouco sobre vocês, o que os trouxe para a terapia?
- Na verdade, eu amo a Fê. Por mim, nem precisaríamos estar aqui.
- Eu adoro o Fá, temos uma boa relação.
- É...
- Estamos juntos há cinco anos.
- É...
- Fala também, Fábio. Só eu falo?
- Quem quis vir aqui? Hein? 
- Mas você aceitou.
- Por não aguentar mais escutar reclamações.
- Viu, Dra. Clarissa? Como você pode começar a notar, ele gosta de minar minha autoestima.
- Mas ela vive reclamando. Eu não mino sua autoestima, apenas sou sincero.
- Então porque não usa sua sinceridade para assumir que não me ama mais?
- Amo sim, mas...
- Mas?
- Não quero ter filhos agora. Ponto.
- Quando você quer? Quando eu tiver cinquenta anos?
- Eu preciso de um tempo. Quero avançar na carreira primeiro, me estabilizar...
- E o meu relógio biológico? Ah, esquece, não faz parte de sua planilha...
- Dra. Clarissa, ela acha que por eu não querer filhos agora, não a amo.
- E não é? E não é?
- Não!
- Tudo tem que ser do seu jeito, Fábio.
- Não é hora, Fernanda.
- Então faz um favor, pegue esta planilha onde você projeta cada passo da sua vida, suas roupas, sua escova de dentes e saia do meu lado de uma vez por todas!
A sessão acabou. Acertaram o valor e agendaram outro horário, embora ambos insistissem que não haveria próxima vez. Saíram porta afora, seguindo caminhos distintos.
Fábio ainda olhou para trás, a tempo de ver Fernanda firme em sua opinião, caminhando decidida. Era final do dia. E ela virou de volta para ele. 
No mês seguinte, estava grávida. 
Para Dra. Clarissa, voltaram apenas para explicar:
- Não era hora. Segundo minha projeção, seria para daqui a uns três anos. E sou muito racional, extremamente firme em meus argumentos.
- E o que o fez mudar de idéia?
- Os olhos dela. Ele brilham quando cai o sol.

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil está lançando seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, em dois eventos no mês de novembro: na programação do FEIRA ALÉM DA FEIRA 2014, o lançamento será na livraria Bamboletras, no dia 8 de novembro, a partir das 17h30, com atividades para crianças; e na FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE, no dia 15 de novembro, com sessão de autógrafos.