quinta-feira, 25 de abril de 2013

Arnold e as ausências presentes



Hans-Ulrich Treichel
Hans-Ulrich Treichel é um autor alemão contemporâneo cujo texto é sempre marcado por uma inesperado humor e por traços autobiográficos que, longe de servir a uma escrita personalista, enriquecem a narrativa, que transcende assim a questionável dicotomia entre ficção e não-ficção. Em um de seus livros mais recentes, “O Acorde de Tristão”, ele ironiza sua relação com o compositor Hans Werner Henze, de quem é libretista e amigo pessoal, ao narrar a história de um professor de literatura, um germanista, cuja aproximação de um compositor celebrado tem efeitos enormes sobre o acadêmico que está justamente a escrever uma dissertação sobre o esquecimento.

A ironia e o esquecimento também são aspectos recorrentes em sua novela de estréia, “O Perdido”. Nessa obra, Treichel conta a história – segundo ele, verídica e pessoal – de um terrível drama familiar: durante a Segunda Guerra Mundial, um casal foge da invasão russa à Alemanha e, em um momento de desespero, a mãe entrega seu filho pequeno a uma outra alemã, sem ter tempo de dizer-lhe o nome da criança ou perguntar-lhe o nome à mulher. A história, contudo, é narrada do ponto de vista do segundo filho do casal, nascido depois da guerra, cuja infância é marcada pela busca incessante dos pais por esse irmão perdido, Arnold. É ele o narrador inominado que sofre com a culpa alimentada pela mãe e pela indiferença do pai.

No campo simbólico, “O Perdido” pode ser visto como um retrato da própria Alemanha do pós-guerra: a mãe representa aqueles que continuaram, depois do término do conflito, presos àquele passado doloroso e às lembranças de seus traumas pessoais, repletos de culpa pelas escolhas que os alemães fizeram no decorrer da guerra; o pai simboliza os que se aplicaram ao trabalho como uma forma de superar esse passado que eles preferiam esquecer. Em meio a essas duas diferentes posturas em relação a acontecimentos dolorosos tão recentes no imaginário de todo um país, há o protagonista que, mesmo não tendo vivido as agruras do conflito armado, sofre igualmente com suas conseqüências.

Treichel constrói essa trama pela voz de um narrador-protagonista que, sendo adulto, tem laivos de pensamento pueril ao recordar dos acontecimentos da infância sofrida. Sua narrativa em primeira pessoa e com escassa divisão em parágrafos dá ao leitor a impressão de que se acompanha os pensamentos e impressões do narrador no decorrer dos próprios acontecimentos, ainda que em termos gramaticais os verbos no passado predominem, como sói acontecer nas narrativas memorialistas.

TREICHEL, Hans-Ulrich
O PERDIDO
(trad. José Marcos Mariani de Macedo)
Companhia das Letras
O narrador e seu irmão, Arnold, também podem ser vistos como metáforas da divisão da Alemanha em dois países após sua derrota na Segunda Guerra Mundial. Arnold seria a Alemanha perdida, sob influência do bloco soviético, da qual não se tinham notícias precisas por conta de seu regime político fechado, ainda que se soubesse que ela seguia viva; o narrador é a Alemanha Ocidental, cujo peso do passado influenciava ainda uma vida que se queria normal – afastada das idéias reprováveis de sua história política recente – e progressista. Tal associação simbólica é corroborada pela cena final da novela, na qual o narrador e sua mãe aproximam-se de um jovem que seria, possivelmente, o irmão perdido. Repleta de fina ironia, a narrativa mostra que o rapaz cuja identidade é colocada em questão vive uma vida normal como aprendiz de açougueiro – profissão, aliás, intimamente relacionada às origens do próprio pai do narrador – e parece ignorar todo o sofrimento da família que o buscara incessantemente desde o momento trágico da separação. 

Em que pese a possível associação da trama de “O Perdido” com a história recente da Alemanha, não há como ignorar que seu tema mais instigante é o drama humano dessa família dividida pela guerra – uma tragédia que certamente se repetiu em tantos outros lares alemães. Como na vida real, os ausentes dominam os que permaneceram. “A vida dos mortos está na memória dos vivos”, já dizia Cícero. Que dizer então de um ausente cuja existência parece intensificar a culpa e a importância que ele teria no decorrer da vida dos presentes se o destino não lhes houvesse furtado do convívio? Treichel leva o leitor a repensar, em nossas vidas, o papel da memória e do esquecimento.
*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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