quinta-feira, 6 de junho de 2013

Bernarda Alba e o espaço da mulher


Imagens da montagem musical da Broadway, com Phylicia Rashad no papel principal
 Finalizada exatos trinta dias antes de morrer assassinado, em 19 de agosto de 1936, por forças do governo durante a Guerra Civil Espanhola, La Casa de Bernarda Alba, última peça teatral escrita pelo poeta espanhol Federico García Lorca, teve sua montagem de estréia apenas em 1945, em Buenos Aires, cidade na qual Lorca passara cinco meses em 1933, e só viria a ser encenada na Espanha no ano de 1964. 

A construção central do drama de Lorca – a casa na qual uma família de mulheres solitárias é controlada por uma mãe centralizadora e tirânica – teria sido inspirada por uma família da pequena cidade granadina de Valderrubio, onde os pais do poeta tinham uma propriedade rural e conheceram uma certa Frasquita Alba, mãe de quatro filhas às quais comandava com mão de ferro e um homem de nome Pepe de la Romilla, que teria se casado com a filha mais velha de Frasquita por seu dote e, posteriormente, se envolvido com a mais jovem das irmãs. Dessa história real, Lorca apropriou-se da idéia de uma casa sem homens para compor o tema central de La Casa de Bernarda Alba: o lugar da mulher na sociedade espanhola.

O drama divide-se em três atos, todos situados no interior da casa de Bernarda Alba, mãe de cinco filhas – Angustias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela – que vive com elas e sua mãe senil em um pequeno povoado do interior da Espanha. O primeiro ato inicia-se com um diálogo entre La Poncia, serva mais antiga da casa, e outra mulher que Lorca denomina apenas por Criada. Elas conversam enquanto arrumam a sala de visitas para a chegada dos que acompanharam o cortejo fúnebre do segundo marido de Bernarda Alba, e por intermédio das falas dessas duas personagens é que são apresentadas a personagem-título do drama, descrita como tirana de todos los que la rodean e mãe controladora das cinco hijas feas que lhe restaram com a morte do esposo. Sabe-se também que Angustias, a filha mais velha, é fruto do primeiro casamento de Bernarda Alba e a única detentora de um dote deixado pelo pai, ao contrário das irmãs, que nada herdam do pai recém-falecido. Entram em cena as mulheres vindas do enterro de Antonio Maria Benavides, e Bernarda dá ordens às criadas para que sirvam os homens, que ficaram a conversar do lado de fora da casa. É ela também quem conduz as orações pelo morto e, depois da saída das convidadas, maldiz o falatório que, acredita, será iniciado pelas pessoas daquele povoado assim que passarem pelos umbrais de sua porta. Bernarda anuncia que as mulheres da casa manterão um luto de oito anos, nos quais permanecerão trancadas naquela casa, sem contato com o mundo exterior. Ouvem-se gritos e a Criada surge a contar para Bernarda Alba dos desvarios de Maria Josefa, avó das moças; ela ordena à serviçal que leve sua mãe para o pátio, para que os vizinhos não a ouçam, mas orienta em que lugar específico deve ser mantida a velha senil para que os vizinhos não a vejam. Dando por falta de sua filha Angustias, Bernarda descobre que a moça estava a conversar com um homem no portão de casa e espanca-a; ela opõe-se à idéia de que suas filhas mantenham qualquer relacionamento com os homens. Amélia e Martírio, espelhando as palavras de Bernarda, comentam sobre a história do pai de Adelaida, uma moça do povoado, cujas desilusões que causou às mulheres são aludidas como sinal do terror que é a convivência com os homens. Magdalena, por sua vez, entra em cena para contar às irmãs que Angustias, a mais velha, será pedida em casamento por Pepe el Romano – o que ela atribui apenas ao interesse do jovem rapaz pelo dote da irmã. Adela, a mais nova, apaixonada em segredo pelo pretendente da irmã, lamenta sua sorte. O primeiro ato encerra-se com a aparição de Maria Josefa, a mãe de Bernarda Alba, que expressa em sua loucura a vontade das netas: ¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria!

Phylicia Rashad
No segundo ato, as irmãs encontram-se em uma peça interior da casa, tecendo e bordando o enxoval de Angustias. Conversam sobre a corte de Pepe el Romano à irmã mais velha, e La Poncia faz um contraponto aos comentários de Angustias ao contar sua própria história de como conheceu e casou-se com um marido que pouca alegria lhe trouxera. Adela não está presente e as irmãs preocupam-se com ela; procurada pelas irmãs, Adela surge em cena algo transtornada, e La Poncia diz-lhe em particular que seu mal é cobiçar o noivo de sua irmã. A serva tenta convencer a filha mais nova de Bernarda Alba que seu destino é aguardar que sua irmã venha a falecer para assumir o posto de segunda esposa de Pepe el Romano, e diz que assim o faz para defender a honra da casa em que trabalha há tantos anos. Adela revolta-se com La Poncia e afirma que lutará por seu direito de amar o homem que deseja. As demais irmãs, por sua vez, lamentam seus destinos de mulheres solitárias, quando La Poncia conta-lhes sobre os novos homens que chegaram ao povoado, trabalhadores para a colheita próxima, do qual se ouve o canto distante. Quando saem as irmãs para espiar pelas frestas das janelas os homens que passam na rua, Angustias surge em cena reclamando o desaparecimento de uma fotografia de Pepe el Romano, que estava em seu quarto, presente de seu noivo. Bernarda ordena que La Poncia procure o retrato desaparecido; as suspeitas recaem sobre a mais jovem, Adela, mas a serva encontra-o entre as roupas de dormir de Martírio. Bernarda ameaça espancar a filha, que diz ter sido o ato apenas uma brincadeira inocente que fizera com a irmã, Angustias, mas Adela acusa Martírio de nutrir uma paixão secreta por Pepe el Romano.

As paixões ocultas, a inveja e a hipocrisia começam, então, a serem desmascaradas: Martírio e Adela dizem a Angustias que Pepe el Romano casa-se apenas por interesse em seu dote, e Bernarda ordena, rispidamente, que as filhas se calem. La Poncia, em conversa reservada com a matriarca, diz suspeitar que Martírio escondera o retrato por conta do amor de Enrique Humanes, um rapaz que a cortejou mas que fora rechaçado pela mãe por ser de uma classe social inferior. Bernarda, desgostosa com os comentários da serva, relembra-a que ela está naquela casa por piedade da matriarca, que a acolhera ainda jovem, mesmo sendo La Poncia filha de uma meretriz. 


Sem perceber o perigo do comentário, La Poncia conta que Pepe el Romano esteve até às quatro e meia da madrugada a conversar a noiva, mas diante da negativa de Angustias percebe-se que ele esteve em companhia de outra pessoa da casa. Martírio e Adela conversam em particular e a mais jovem revela que Pepe el Romano está a cortejá-la em segredo. La Poncia traz a notícia de uma jovem da aldeia que engravidara sendo solteira, dera à luz um menino em segredo e que o matara, sendo o crime revelado por acaso do destino; ouve-se o povo nas ruas que clama pelo linchamento da moça; Bernarda e Martírio saem em apoio à morte da pecadora, enquanto Adela desespera-se e clama pela libertação da moça, recordando que ela também corria perigo por seu amor secreto por Pepe. 


O terceiro ato passa-se no pátio interno da casa de Bernarda Alba, onde a matriarca recebe a visita de Prudência e com ela compartilha de uma ceia modesta. A visitante conta a Bernarda Alba de seus desgostos por conta de sua filha, expulsa de casa pelo pai. Angustias e Martírio estão brigadas, e Bernarda insiste que elas façam as pazes ao menos para manter as aparências de um lar em harmonia. A filha mais velha diz desconfiar de Pepe, que lhe avisara que aquela noite não iria à casa por conta de outros compromissos com os pais em outro povoado, e todas retiram-se para dormir. Bernarda e La Poncia conversam sobre as suspeitas da empregada de que uma cosa tan grande estaria a passar na casa; a matriarca rechaça essa idéia, e diz confiar que em suas mãos está o controle total do que se passa ali. La Poncia parece antever a desgraça que se aproxima e comenta com a Criada sobre o envolvimento de Adela e Pepe; a moça aparece no pátio e some logo em seguida, entrando no curral. Maria Josefa, a mãe de Bernarda, surge em cena carregando uma ovelha nos braços e, em sua loucura, fala do poder de Pepe el Romano sobre todas as netas, às quais agoura um destino cruel de solidão. Martírio vai até o curral e chama Adela, que aparece algum tempo depois, recompondo-se; elas brigam por conta do que Adela estaria a fazer com a irmã mais velha, Angustias, ao roubar-lhe o futuro esposo, mas Adela acusa Martírio de também estar apaixonada pelo rapaz, e esta acaba por confessar que o ama. Seguem as duas brigando, pois Martírio diz que irá denunciá-la, e Adela fala de sua intenção de fugir e tornar-se amante de Pepe el Romano. Bernarda aparece no pátio e ameaça surrar Adela; esta toma-lhe o bastão das mãos e quebra-o em duas partes. Com o alvoroço de vozes, as demais mulheres surgem em cena. Adela diz, então, a Angustias que ela, a mais jovem, é a verdadeira mulher de Pepe; Bernarda sai de cena e busca uma escopeta com a qual entra no curral e atira. Martírio mente, dando a entender que a mãe matara Pepe el Romano, que na verdade apenas correra com o disparo. Adela corre para o curral e lá se tranca; Bernarda ordena que Adela abra a porta, mas é La Poncia quem abre o curral e descobre a tragédia: Adela está morta, enforcada. Bernarda, diante da comoção de todas e da notícia trazida pela criada de que os vizinhos já se levantavam para ver o que acontecia naquela casa, ordena que a filha morta seja vestida como si fuera doncela e que as demais filhas mantenham silêncio sobre o que ali se passara.


No decorrer de todo o drama, o espaço assume um papel de relevância na construção da trama, o qual pode ser mensurado pelo detalhamento da descrição de cada ambiente feita pelo autor ao início de cada ato. O primeiro ato acontece na sala de visitas da casa de Bernarda Alba, único ambiente no qual as mulheres de fora da família são recebidas durante as exéquias do esposo da personagem-título. O cômodo é descrito por Lorca como sendo uma habitación blanquísima, de paredes grossas e cortinas claras, denotando extrema limpeza e, ao mesmo tempo, um estado de monotonia e opressão que é quebrado apenas por quadros com paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda. Pode-se associar o ambiente ao arcabouço psicológico das personagens: Bernarda Alba, a matriarca, luta pela manutenção das aparências acima de tudo, criando um ambiente de tirania do qual a única fuga possível parece ser a fantasia, o sonho, representados pelas “paisagens inverossímeis” dos quadros descritos pelo autor. As paredes grossas – e o próprio isolamento das janelas que Bernarda Alba tenciona colocar durante os anos todos de luto – são uma proteção contra o mundo exterior, marcado pelo masculino. No decorrer de todo o drama, aliás, o espaço público – o campo, as ruas, as estradas – são associados ao mundo dos homens, cujas únicas mulheres que lhe acessam são as malas mujeres, as que fizeram de sua intimidade, algo público. A casa, opostamente às ruas e à natureza, é o espaço limitador das mulheres, a barreira concreta para que sejam mantidas as convenções sociais e os costumes. Não por acaso, no decorrer dos dois primeiros atos, a comunicação com o meio exterior, o acesso daquelas mulheres ao mundo dos homens, dá-se pelas frestas das janelas, pelas quais elas podem espiar o universo masculino sem dele fazer parte. 

A partir deste primeiro espaço, a sala de visitas, o cômodo mais próximo da rua, a peça interioriza-se a cada ato. O segundo ato é localizado em um cômodo interno e comum, no qual as filhas bordam o enxoval que não usarão; à direita, estão as portas dos quartos de dormir, únicos aposentos nos quais as filhas tem sua privacidade e que representam, assim, os sentimentos e a individualidade de cada uma daquelas mulheres. É também um espaço de memórias, no qual afloram as revelações do passado que permeiam esse segundo ato. O terceiro ato é ainda mais distante das aparências da sala de visitas: trata-se do pátio interno, lugar de acesso restrito às mulheres da casa e às visitas mais íntimas; o pátio, espaço aberto, ao ar livre, onde tudo se mostra às claras, é a parte de trás da casa, que dá entrada para o curral – lugar onde os instintos e as emoções são liberadas e fora de controle. É o local onde as mulheres apresentam-se em sua maior intimidade, vestindo suas roupas de dormir e conversando abertamente sobre seus sentimentos; onde a loucura de Maria Josefa apresenta-se mais explicitada, assim como por suas palavras, os sentimentos das demais mulheres; onde o cerne dos desentendimentos e desencontros entre as irmãs mostra-se por inteiro. 

O espaço fornece ainda elementos para outros grandes antagonismos mostrados no drama de Lorca: o público (representado pela via pública) e o privado (o interior da casa), a norma (o silêncio da casa) e o desejo (a transgressão dos sons dos homens que passam, as batidas fortes do cavalo reprodutor que está no curral no terceiro ato), a realidade (as paredes sólidas e concretas, construídas, segundo Bernarda, para que ni las hierbas se enteren de [su] desolación) e a fantasia (os quadros oníricos da sala de visitas), o campo das emoções humanas (o pátio) e dos instintos primitivos (o curral onde Adela e Pepe encontram-se, o galinheiro onde Adela vai expor seu vestido novo às aves, no primeiro ato). 

O espaço externo, além de representar o mundo masculino, é sempre a fonte dos conflitos no decorrer da trama: na via pública, ocorrem os cantos dos trabalhadores e os gritos de linchamento da jovem que matara o próprio filho recém-nascido; no campo, residem os sonhos de liberdade que fazem com que as mulheres invejem aquelas mujeres malas que os camponeses contratavam para animar-lhes na época da colheita; da via pública, à janela, Pepe el Romano corteja Angustias e seduz Adela; ao ar livre, no pátio aberto – ainda que interior à estrutura da casa –, dão-se as revelações e a liberação dos instintos. 

Ainda que os ambientes exteriores à casa, e que jamais aparecem em cena, sejam a representação do mundo dos homens, o elemento masculino mais forte em cena parece ser, sem dúvida, a própria Bernarda Alba. Ela é quem conduz a família e contém os excessos que, a seu ver, podem depor contra as tradições e as convenções sociais, voltando a curiosidade dos vizinhos e seu falatório contra ela mesma e suas filhas. Bernarda representa a convenção que oprime aquelas mulheres e delimita seu espaço no mundo.

 *Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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