quinta-feira, 13 de junho de 2013

Tristessa e a decadência entorpecida


Jack Keuroac
A obra literária de Jack Kerouac (1922-1969) foi a mais representativa da chamada geração beat – um movimento que começou a partir do encontro do escritor estadunidense de origem franco-canadense com outros autores como William S. Burroughs, Allen Ginsberg e Neal Cassady em Nova Iorque, nos entornos da Universidade de Columbia, nos idos dos anos 1940. Kerouac, que cunhou o termo pelo qual aquele grupo de escritores seria conhecido, forneceu o caminho literário pelo qual muitos dos novos escritores que se somariam ao movimento iriam seguir: o da “prosa espontânea”, pouco convencional, com que Kerouac redefiniu o que já se conhecia em narratologia por “fluxo de consciência”.

A prosa espontânea de Jack Kerouac era fruto de sua forma peculiar de escrita, que consistia em redigir de forma ininterrupta, sem a preocupação de interromper ou organizar o fluxo de idéias pelo uso de pontuação ou a divisão em parágrafos. Tal maneira inovadora de escrever ficção atendia à filosofia da geração beat: no artigo This is the Beat Generation, publicado no The New York Times em novembro de 1952, John Clellon Holmes – o primeiro a usar o termo beat para se referir àquele grupo literário – definiu assim o ideário do movimento, os sentimentos que representavam seus adeptos:

“...the feeling of having been used, of being raw. It involves a sort of nakedness of mind, and, ultimately, of soul; a feeling of being reduced to the bedrock of consciousness. In short, it means being undramatically pushed up against the wall of oneself. A man is beat whenever he goes for broke and wagers the sum of his resources on a single number; and the young generation has done that continually from early youth. ”
 


“...o sentimento de ter sido usado, de ser cru. Envolve uma espécie de nudez da mente, e, em última análise, da alma; um sentimento de ser reduzido aos alicerces da consciência. Em resumo, significa ser empurrado contra a parede de si mesmo, sem drama. Um homem é beat sempre que está falido e aposta o que lhe restou de seus recursos em um único número; e a nova geração tem feito isso continuamente desde a mais tenra idade.” (tradução nossa)

Para tal geração, viver em sua plenitude significava experimentar, lançar-se à prova, arriscar-se. Tal filosofia de vida está perfeitamente retratada na obra mais conhecida de Kerouac, On the Road, na qual relata ficcionalmente sua trajetória de sete anos em viagens pela conhecida rota 66, que cruza o território norte-americano de Chicago a San Francisco, e também em uma de suas mais apreciadas novelas, Tristessa. Publicada em 1960, esta pequena obra narra a convivência de Jack, um escritor estadunidense que se apaixona por uma prostituta mexicana com quem convive na Cidade do México, entre viciados e traficantes, entre a pobreza financeira e a decadência moral.
 

'Tristessa', em edição brasileira da LP&M
KEUROAC, Jack.
Tristessa.
(Ed. L&PM)
Na narrativa de Kerouac em Tristessa, o tempo e o espaço são imprecisos. A descrição dos locais freqüentados por Jack, por exemplo, são feitas a partir de suas impressões pessoais e dos episódios de seu passado que aqueles espaços sugerem – raramente pelas características únicas que eles poderiam apresentar. O tempo – apesar da divisão da obra em dois momentos explicitados pelo título dado à segunda parte da novela, Um ano mais tarde... – também é retratado com ambigüidades, preenchido por analepses que levam a narrativa para outros momentos da história do protagonista cuja importância na trama é questionável, mas que corroboram a impressão de que se está a acompanhar o fluxo de consciência de um poeta decadente e mergulhado no submundo das drogas. Tais dubiedades lançadas ao leitor dão o tom do próprio estado de alma do protagonista, que se diz constantemente ébrio pelo uso do álcool e dos entorpecentes que circulam livremente naquele meio. É a escrita de Kerouac, com sua não-linearidade de pensamento, suas deformações e lapsos, que garante ao protagonista – cujas referências autobiográficas são inúmeras – sua verossimilhança.
 
As idéias da geração beat, pela própria proximidade temporal com o existencialismo, foi muitas vezes relacionada com o ideário daquela escola filosófica francesa, cuja principal bandeira é a liberdade do indivíduo como regente único dos seus atos e destino. De certa forma, o pensamento dos beat, fortemente influenciado pelas impressões causadas pela nova sociedade que emergia do pós-guerra, aproxima-se das idéias sartreanas ao privilegiar o individualismo e a experimentação, mas sua marca mais representativa era a constatação dos homens como seres em desmantelamento e a necessidade de estabelecer, a partir de tal verdade, a fraternidade e os laços de amizade pelos quais eles deveriam ajudar-se mutuamente para enfrentar a degradação inevitável das relações humanas. É com esse olhar de empatia que Jack, o protagonista de Tristessa, acompanha a derrocada final da prostituta por quem se apaixonara, mas que não consegue salvar por conta do peso de sua própria decadência.
 
*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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