por Fernanda Mellvee
Machado de Assis |
Talvez
em nenhum outro livro da nossa literatura, o poder do narrador sobre o que está
sendo dito fique tão evidente. Em Dom Casmurro, Machado de Assis demonstra toda
a sua capacidade de prender o leitor com ideias, provas e contraprovas sobre o
enredo que ainda hoje confunde o público.
É mais seguro admitirmos que Dom Casmurro se trate da história de um
caso irreversível de ciúme em vez de comprarmos a sedutora ideia de que o
romance retrate uma historia de traição.
No
primeiro capítulo, o narrador nos conta que o seu apelido, “Dom Casmurro” lhe
foi dado em virtude de seu comportamento recluso e calado. O narrador explica
que ganhou este apelido depois de cochilar enquanto ouvia os versos que um
vizinho de bairro declamava para ele durante o curto trajeto do trem. O apelido
logo foi conhecido e divulgado pelos vizinhos que também não concordavam com
sua maneira calada e introspectiva. Em seguida, Bentinho, o
narrador-protagonista do romance, revela que o apelido dado pelo “poeta do
trem” servirá de título para o seu livro. No trecho seguinte encontramos um
exemplo da ironia que é uma das marcas deste romance e que é uma das principais
características de Machado de Assis.
“Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.”(Machado de Assis, 2008, p.7)
Primeira edição |
Além
da famosa ironia de Machado, já citada anteriormente, neste trecho encontramos
uma espécie de síntese do poder no narrador. Machado, através de Bentinho, nos
sugere que é possível que o narrador extrapole os limites de seu relato, relegando
ao autor, como neste caso, o papel de um mero instrumento que executa a tarefa
de escrever. Quando Bentinho afirma que alguns livros só têm o título de seus
autores e que há outros que nem isto possuem ele nos diz que a verdadeira
virtude consiste em saber como narrar, não importa quem esteja narrando assim
como não importa o que está sendo narrado.
No segundo capítulo Bentinho revela os motivos
pelos quais decidiu escrever este livro. Logo no primeiro paragrafo ele nos
conta que vive só, com apenas um criado, que a casa é própria, e que foi
construída à maneira da antiga construção da Rua de Matacavalos, seu antigo
endereço. Este desejo de reproduzir o mesmo ambiente que lhe serviu de moradia,
anos antes já é uma pista de que o proprietário gostaria de recuperar algo que
está em outro tempo, neste caso um passado já distante.
“Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua dos Matacavalos, dando-lhes o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e sala.” (Machado de Assis, 2008, p.8)
O
trecho acima deixa bastante clara a intenção do protagonista em recriar a mesma
residência em que vivera tempos atrás e com isto reviver um tempo que não é o
presente. Podemos imaginar com isto que há algo no seu passado que ainda o
perturba, algo que não ficou bem resolvido e que o presente não lhe satisfaz, e
é daí que surge a necessidade de uma fuga para o passado.
"(...) O ciúme de Bentinho é
a base de todo o desenrolar da trama." |
Outro
aspecto que é bastante interessante de ser analisado neste capítulo são as
figuras que enfeitam os quatro cantos do teto, com seus respectivos nomes:
César, Augusto, Nero e Massinissa. O próprio Bentinho nos diz não saber o
motivo pelo qual estas figuras faziam parte da decoração da casa de
Matacavalos, uma explicação provável seria que naquela época era uma tendência
utilizar elementos da cultura clássica como parte da decoração. Estas figuras, que já estavam presentes na
casa da Rua de Matacavalos antes mesmo dela pertencer a Bentinho, talvez fossem
mais do que simples adorno. Se pararmos para refletir sobre estes nomes, sobre
estes soberanos, facilmente poderemos ligar a tirania e o poder absoluto que
eles exerciam em vida ao poder absoluto e à tirania do proprietário da casa,
neste caso, Bentinho, o narrador. Mais uma vez, Machado de Assis associa a
figura do narrador ao domínio da situação, ao poder.
Nos próximos capítulos o ciúme de Bentinho é
a base de todo o desenrolar da trama. Machado, usando de toda a sua habilidade
consegue fazer de uma suspeita uma certeza para muitos e até hoje Dom casmurro
é lembrada por muitos como uma historia de adultério. No trecho a seguir
veremos um exemplo de como o ciúme de Crescendo de maneira gradativa.
“Os braços merecem um período. Eram belos, e na primeira noite em que os levou nus a um baile, não crio que houvessem iguais na cidade (...) Eram os mais belos da noite. A ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir e que roçavam por eles mangas pretas, fiquei vexado, aborrecido. Ao terceiro baile não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios, concordou logo comigo.” .”(Machado de Assis, 2008, p.137)
Como verificamos no excerto acima, a beleza
da esposa, representada pelos braços nus no baile em principio envaidecia
Bentinho, em um segundo momento passou a perturbá-lo e o deixar inseguro. No
terceiro baile esta insegurança foi tamanha que o impediu de comparecer na
festa. Podemos ver que em pouco tempo, ainda no início do casamento, no momento
do auge de felicidade conjugal, o ciúme do marido já estava prejudicando as
relações sociais do casal. Escobar que ainda está sendo considerado um amigo e
confidente do nosso narrador não foi poupado de sua desconfiança como iremos
verificar mais adiante.
Uma das mais célebres expressões do livro |
O momento que foi o ápice da suspeitas do
marido enciumado foi na ocasião do enterro do amigo. Escobar que certa manhã ao
nadar em um mar agitado afogou-se. Durante o enterro de Escobar, Bentinho teve
quase certeza do adultério, baseado em “provas” nada concretas. O trecho
seguinte se refere a este momento:
“No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver, tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não lhe admira lhe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas. (...) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.” (Machado de Assis, 2008, p.157).
Na tradução para o francês, ao título do livro foram acrescidos os "olhos de ressaca" de Capitu |
“O ciúme nunca deixou de fascinar Machado de Assis. Em suas obras, seja em artigos ou na ficção, ele frequentemente faz pausas para manipular um lento bisturi sobre uma nova manifestação de ciúme. (...) É ele mesmo quem revela que se trata da historia de Otelo, mas com certa diferença, sua Desdêmona é culpada. “ (Helen Caldwell, P. 18; 21)
No
excerto acima, retirado do livro de Helen Caldwell, temos a chave para
compreender que esta história não se trata de uma história sobre o adultério,
mas sim de uma história em que o ciúme ganha tanta importância que quase se
transforma em um personagem, o protagonista. Podemos dizer que Bentinho
personifica o ciúme e toda a sua vida foi afetada por este sentimento. Machado
de Assis, usando toda a sua genialidade, conseguiu criar um enigma que levou
mais de um século para ser desvendado e seu narrador foi a peça principal para
que isto fosse possível.
*Texto de Fernanda
Mellvee, graduanda em Letras - Português, Inglês e Respectivas
Literaturas - pela UFRGS. Escritora e poetisa, integra a Oficina de
Iniciação à Criação Literária da Sapere Aude! Livros desde março de
2013. Seus principais interesses são a História, a Mitologia e a
Literatura.
Referências:
ASSIS, Machado de/ Dom Casmurro- 2ª ed.-São
Paulo: Ciranda Cultural, 2008.
CALDWELL, Helen/ O Otelo brasileiro de Machado
de Assis- Ateliê Editorial, São Paulo, 2002.
Esse artigo é simplesmente maravilhoso. Parabéns pelo trabalho!
ResponderExcluirO artigo é muito bom! Minha teoria é de que, Bento na verdade era homossexual e não se assegurava!
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