Arthur Schnitzler |
Um dos mais profícuos autores e dramaturgos da primeira metade do século XX, Arthur Schnitzler (1862-1931) passaria muitas décadas ofuscado pela obra de outros autores austríacos e alemães contemporâneos seus, não pela qualidade de seus escritos mas, sobretudo, pelas controvérsias em torno do teor de seus escritos, tanto em suas peças teatrais quanto em seus textos em prosa.
Se hoje a obra de Schnitzler vive um merecido renascimento, muito se deve à novela literária Breve Romance de Sonho (1921), resgatada pelo cinema na adaptação modernizada do texto feita por Stanley Kubrick em seu De Olhos Bem Fechados (1998), canto do cisne do cineasta norte-americano estrelado por astros como Tom Cruise e Nicole Kidman. O breve texto de Schnitzler, no entanto, carrega quase todos os méritos pelo sucesso do filme - nele estão presentes praticamente todos os elementos de escândalo que levaram multidões aos cinemas -, acrescidos daqueles que talvez sejam os grandes talentos de Schnitzler: escrever em uma prosa límpida e envolvente, bem como contar uma história que absolutamente torne impossível ao leitor abandonar a narrativa antes do desenlace final.
Em Breve Romance de Sonho, somos apresentados nas primeiras páginas do livro ao casal Fridolin e Albertine em uma cândida cena familiar na qual contam uma história das Mil e Uma Noites para a pequena filha; médico em início de carreira, Fridolin mantém com Albertine um matrimônio harmônico, exemplar, que será rompido pela conversa que terão sobre o baile da noite anterior. As provocações entre os cônjuges sobre flertes e olhares com outros convivas leva a uma conversa mais tensa sobre fantasias do passado, e Albertine acaba por confessar a Fridolin que trocara olhares com um homem hospedado no mesmo hotel que eles no verão passado; incomodado com a revelação, Fridolin também conta ter se sentido atraído por uma jovem nadadora. A conversa leva-os à promessa de que, a partir de então, irão contar um ao outro sobre desejos desse tipo que surjam à mente. A esposa, sorrindo, conta-lhe então que teria se entregado a ele antes do casamento, de tão apaixonada que estava por ele. Fridolin, estranhamente, entende que isso seria um sinal de que Albertine poderia ter se deixado levar por qualquer homem e sai de casa, aflito, para atender um paciente moribundo.
O que se sucede nessa breve novela a partir desse primeiro capítulo é um genial emaranhado de situações nas quais Schnitzler vai expor a natureza contraditória dos desejos do homem ferido em seus brios masculinos. Fridolin age movido pelo desejo, um sentimento que mistura a vontade de trair a esposa por vingança e o impulso de se lançar em aventuras nunca vividas. Tudo isso é precipitado por uma declaração de amor inesperada vinda de Marianne, a filha do paciente que vai visitar e que já encontra morto em seu leito. Fridolin sai daquela casa e começa a vagar por Viena, cruzando em seu caminho com prostitutas, pedófilos e, por fim, uma orgia secreta de mascarados da qual é expulso e ameaçado de morte, sendo salvo por uma das convivas que dele se apieda.
Mas nada em Schnitzler é fácil de definir. A novela caminha por uma eterna penumbra, e não são raras as metáforas que o autor austríaco faz com a luz e a sombra. Quase todas as cenas em que Fridolin depara-se com seus desejos sexuais reprimidos acontecem no escuro, desde a revelação do amor de Marianne, prometida em casamento a um médico mais bem sucedido que Fridolin, à dança orgíaca entre monges mascarados e freiras nuas de rosto coberto por véus negros. Excitado por todos os acontecimentos da noite, Fridolin é surpreendido com o sonho que lhe conta Albertine, muito mais rico em transgressões que as pequenas aventuras que ele vivera. No dia seguinte, à luz do dia, Fridolin tentará refazer o mesmo caminho de sonho da noite anterior, com surpreendentes revezes. Ao retornar para casa, Fridolin encontrará Albertine adormecida; no seu lado da cama do casal, a máscara que usara na noite anterior e tentara esconder da esposa.
Alice aguarda o esposo dormindo ao lado de sua máscara: Nicole Kidman em cena de "De olhos bem fechados" |
Sigmund Freud, contemporâneo de Schnitzler, dizia ter medo de conhecer pessoalmente o escritor, por considerá-lo seu duplo - em carta, disse que tinha "a impressão de que [Schnitzler] aprendera pela intuição —
em verdade, o resultado de sua altamente sensível introspecção — tudo o que [ele, Freud] teve que aprender pelo trabalho laborioso de observação e estudo de diversos casos de seus pacientes". Escrito em uma linguagem objetiva e, ao mesmo tempo, nebulosa, abrindo caminho para diversas interpretações, a novela
de Schnitzler é tão memorável que Kubrick não teve pudores de inserir em
sua versão contemporânea da história todas as situações do livro e
alguns diálogos em sua integralidade. Breve Romance de Sonho leva o leitor a acompanhar as sensações e frustrações de Fridolin em sua busca — primeiro, de uma tola vingança real ao que fora apenas um desejo jamais realizado pela esposa; depois, de respostas no universo subterrâneo que sua noite de sonho desperto o leva a conhecer. Como os tantos outros seres que vai encontrar em sua breve jornada, Fridolin também carrega uma máscara que lhe dá a sensação de liberdade diante dos ditames do mundo, mas que se mostra igualmente uma prisão da qual pode ser difícil se libertar. Entre sonho e realidade, Fridolin e Albertine precisarão decidir se seguem a valsa da vida social ou deixam para trás o baile de máscaras.
*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.
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