quinta-feira, 2 de maio de 2013

Pierre, Andrei, Natasha e as três faces da Rússia

O baile retratado em Guerra e Paz:
 Andrei e Natasha dançam pela primeira vez.
Resumir toda a ação apresentada neste que é ainda hoje considerado o maior romance de todos os tempos é uma tarefa hercúlea e ingrata. Não por conta da extensão de Guerra e Paz, que soma mais de mil e trezentas páginas, mas pela riqueza de episódios e talento narrativo de Liev Tolstói.

O livro, escrito durante seis anos e publicado pela primeira vez em 1863, por capítulos, em um jornal de São Petersburgo, nasceu de um descontentamento de Tolstói com a historiografia russa. Para o escritor, a História era contada de modo frio e distante, dando ênfase exagerada aos grandes feitos de seus principais atores, mas ignorando os resultados dessas decisões de alto escalão na vida do cidadão comum. Como o Victor Hugo de Os Miseráveis, Tolstói usa um imenso pano de fundo histórico para, a partir dele, contar os horrores da guerra no olhar de personagens individualizadas e realistas.

O cenário escolhido por Tolstói é o das Guerras Napoleônicas, e por uma razão bem definida: para o escritor, aqueles acontecimentos históricos marcaram o nascimento da moderna nacionalidade russa e é nesse sentido que Guerra e Paz torna-se um romance rico e cativante. Poucos anos depois da Revolução Francesa, a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, no chamado Golpe do 18 Brumário - em nove de novembro de 1799 - e, posteriormente, na aclamação como Imperador da França marcam uma mudança significativa no panorama político da Europa. Napoleão personifica o novo espírito republicano que ameaça o poder dos monarcas do Velho Continente, e a resposta de monarquias tradicionais como as da Rússia, Áustria e Inglaterra veio na forma de uma coalisão, em 1805, para derrotar o avanço das tropas napoleônicas em três frentes de combate. No ano seguinte, Napoleão decreta um embargo continental à Inglaterra, declarando-se em estado de guerra com qualquer nação europeia que venha a manter relações comerciais com os britânicos. A escolha soberana da Rússia de desrespeitar tal ingerência francesa foi um dos principais motivos para a guerra entre esses dois países em 1812.

O autor apresenta sua vasta pesquisa histórica sobre tais acontecimentos, que incluiu visitas aos locais de batalha e entrevistas com historiadores russos e franceses, entremeada com a vida de quatro famílias da aristocracia moscovita - os Bezukhov, os Rostov, os Bolkonski e os Kuragin - e, mais particularmente, com três personagens principais que irão conduzir o olhar do leitor sobre a guerra: Pierre Bezukhov, o generoso e tímido intelectual que, como filho bastardo, herda a fortuna de seu pai; o príncipe Andrei Bolkonski, ambicioso e inteligente filho de um comandante militar reformado; e Natasha Rostov, a ingênua e sonhadora condessa que será o interesse amoroso de Andrei e Pierre ao longo da trama. A história do livro cobre o período de 1805 a 1820, mas o ano em que a trama mais se deterá é o de 1812 - data que marca a libertação da Rússia da ameaça napoleônica, o ano coincide também com a mudança de visão dos personagens centrais da obra, refletindo a própria renúncia russa à influência cultural francesa dominante na aristocracia.

Mais recente tradução para o inglês
Esses temas são apresentados pelo autor de forma orgânica e supreendentemente sucinta - no sentido de que há pouco em sua obra que possa ser extraído sem que se perca informações importantes sobre os temas maiores abordados pelo romance. Entre desencontros amorosos e outras voltas da roda da fortuna, Tolstói usa seus três personagens centrais como metáforas dessa Rússia que renasce: Pierre representa a intelectualidade russa cujos olhos estavam voltados para a França como centro da cultura europeia e que precisa romper com essa subjugação cultural para se tornar, de fato, russa - o nome francês do personagem é um sinal preponderante dessa metáfora, e o movimento de Pierre, de uma vida urbana e aristocrática para uma existência no campo, mais próxima dos camponeses e servos, mostra uma Rússia que precisou resgatar suas origens para se reconstruir; Natasha, ícone no livro de uma realeza um tanto imersa ainda nas ideias românticas e alienada em relação à vida russa, também fará essa trajetória em direção às raízes populares, marcada pela cena, no livro, em que está foragida no campo e participa de uma dança camponesa como se sempre tivesse sabido como dançá-la, uma espécie de memória genética de seus antepassados; Andrei é a Rússia impetuosa, guerreira e racionalista que precisa aprender os valores do perdão e da humildade. Tolstói marca essa trajetória russa com as mudanças que esses três personagens sofrem durante a Invasão Napoleônica: Pierre, o intelectual apaixonado pelo bonapartismo, perambula, depois de ter presenciado os horrores da guerra, pelas ruas da Moscou em chamas e acredita-se com a missão divina de assassinar Napoleão; Andrei, ferido em combate, depois de presenciar uma batalha distante da guerra sanitarizada que a formação militar lhe apresentara, aprende o valor do perdão ao presenciar, no leito ao lado do seu, a morte de seu rival no amor de Natasha; a jovem condessa, por sua vez, é confrontada com o sofrimento real do povo e aprende o valor do desprendimento ao ver as carruagens abarrotadas dos objetos da família, prontas para a partida, e um grupo de soldados feridos que iria permanecer em Moscou à espera das tropas francesas, por não ter como se locomover - e é por iniciativa caridosa da jovem que móveis e quadros são deixados para trás, para que nas carroças sejam acomodados os feridos e levados para o campo em companhia dos Rostov. Se Andrei é o intelecto, a disciplina e o orgulho russos, Pierre representará o espírito, a espontaneidade e a generosidade. Entre esses dois lados quase opostos, Natasha, uma quase personificação dessa Rússia que retorna às suas raízes, ao que lhe torna única, será levada a escolher.

O campo, a terra russa, aparecem em Guerra e Paz como o caminho de redenção para o povo russo. O incêndio de Moscou, provocado como estratégia de guerra para que Bonaparte não tivesse como se manter na capital russa sem recursos e suprimentos, funciona no livro como um fogo sagrado que aproxima os moscovitas do campo aberto ao forçá-los a se refugiarem nas áreas rurais. Essa retirada para o campo fará com que a aristocracia moscovita, obrigada a viver com menos luxo e mais próxima de seus servos, aprenda o valor dessas pessoas e sua condição de iguais. Há uma razão importante para que Tolstói assim retrate aquele período histórico, ainda que a construção de uma nova Rússia tenha sido um processo que tomou, em verdade, algumas décadas: ele escreve o livro no momento em que, na Rússia, as grandes mudanças do tzar Alexandre I estão em andamento, dentre elas a libertação dos servos, de 1861. Tolstói era um grande defensor da ideia e foi um dos pioneiros a oferecer educação para as crianças filhas dos servos de sua propriedade, algo que o personagem Pierre também fará. O jovem Bezukhov, aliás, é o que melhor representa no romance essa Rússia aristocrática que, diante dos horrores da guerra, aprendeu a respeitar o heroísmo vestido de simplicidade dos camponeses e servos mais humildes.

Uma rara fotografia do autor,
 poucos anos antes de sua morte em 1910
.
A preocupação de Tolstói em dar voz aos humildes reflete-se na maneira como trata suas personagens. Em Guerra e Paz, elas são cerca de quinhentos e oitenta, entre ficcionais e históricas, como Napoleão Bonaparte e Alexandre I. Mas todas aparecem na história com alguma referência a um passado, ou a algo que as individualiza. Não há tipos na galeria de personagens de Tolstói, e mesmo o tratamento dado por ele aos seus personagens centrais é distinto - eles são factíveis, tem paixões questionáveis e fazem escolhas erradas que desencadeiam terríveis consequências no decorrer da história. Uma história que por vezes beira o inverossímil, já que Tolstói não se preocupa em evitar as casualidades que unem, por exemplo, em uma mesma cena de batalha com milhares de soldados dois antigos rivais que se encontram por força do acaso. Mas o enredo múltiplo dá à obra de Tolstói coerência e aceitação da parte do leitor, que pelo interesse despertado por aqueles personagens acata as coincidências como outra possibilidade da vida ali descrita. É o tratamento psicológico dado a esses episódios que lhes confere a carga simbólica e o cabedal de memórias que cada nova cena suscita, cativando o leitor.

Tolstói era um aristocrata e viveu sua juventude intensamente, iniciando estudos universitários em Direito e em Línguas Orientais, mas sem seguir adiante em nenhuma dessas áreas. Como acontece com os personagens principais de Guerra e Paz, sua vida é transformada ao se deparar com os horrores da guerra - é de sua experiência como militar na Guerra da Criméia que Tolstói consegue descrever com tamanho realismo o caos dos campos de batalha, sensação compartilhada com Pierre Bezukhov, seu quase alter-ego na obra. Pode-se observar na biografia de Tolstói também ecos do movimento de migração da vida urbana para o campo pelo qual passa boa parte dos aristocratas retratados no livro. Sem ser autobiográfico, o autor de Guerra e Paz transforma sua visão de mundo em arte nas descrições precisas e nos sentimentos profundamente humanos a partir dos quais seus personagens são retratados. É isso que torna o livro uma obra-prima do gênero romanesco, um livro que, segundo Simon Schama, "não é um livro apenas para ser lido, mas para ser vivido".

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário