quinta-feira, 9 de maio de 2013

Wertheimer e o peso da genialidade

Thomas Bernhard
Thomas Bernhard
Quando encontramos uma pessoa como Glenn estamos perdidos ou salvos, penso eu; no nosso caso, Glenn nos destruiu, pensei. Assim o narrador sem nome de O náufrago, novela do escritor austríaco Thomas Bernhard, resume o fato norteador de toda a narrativa: o efeito devastador que o convívio com o pianista canadense Glenn Gould causou na vida do amigo Wertheimer e na do próprio narrador.

Na história, contada por Berhard por meio de um longo monólogo interior, o narrador conhece Wertheimer e Glenn Gould em um curso de verão no Mozarteum de Salzburgo, ministrado pelo grande pianista Vladimir Horowitz. Gloud era já possuidor de um talento que o tornaria um dos maiores gênios da música do século XX, e reconhecê-lo como tal teria sido a perdição para os dois amigos: um deles, o narrador, decide abandonar a música e dedicar-se ao ofício de escritor em um outro país, em uma espécie de fuga daquele destino de virtuose que assumira como uma forma de se contrapor aos desejos da família; Wertheimer, contudo, vê na genialidade de Gould um golpe fatal em sua vida vazia de sentido, autocentrada e egoísta. Gould, cuja interpretação das Variações Goldberg passa a ser a obsessão de Wertheimer, dera ao colega da turma de Horowitz a alcunha que melhor definia sua alma deprimida e sem esperança: náufrago.


Glenn Gould
Glenn Gould
O autor compõe sua narrativa por intermédio de artifícios que permitem uma aproximação entre enredo e forma: as Variações Goldberg, obra de Johann Sebastian Bach cuja interpretação transformara Glenn Gould em um dos mais prestigiados pianistas do século passado, é composta por um tema musical que é reapresentado em diferentes variações, as quais não repetem a mesma melodia, mas antes são construídas sobre o mesmo desenvolvimento de acordes e a mesma linha de baixo da ária inicial; a novela é escrita em um estilo no qual se sobressaem as repetições vocabulares e sintáticas, bem como um contínuo revisitar de ações e temas anteriormente apresentados. Como aquela obra de Bach, à qual Gould se dedicaria integralmente ao longo de sua carreira musical, o texto de Bernhard gira em torno do tema inicial, apresentado nos três primeiros parágrafos: o retorno ao passado – marcado pela chegada do narrador a uma pousada austríaca freqüentada por Wertheimer –, a dualidade entre a obsessão e a genialidade – sugerida pela constância de Gould em estudar apenas as Variações Goldberg – e a incapacidade de lidar com as limitações humanas – o suicídio de Wertheimer, cuja elucidação é a razão maior do narrador em retornar àquela pequena hospedaria no interior da Áustria.


A genialidade de Glenn Gould tornou-o obsessivo e arredio ao convívio com outras pessoas; Gould ensimesmou-se em sua música, o que o levou a cancelar as apresentações em público ainda no início de sua carreira como virtuose. Ainda que limitado às gravações de álbuns, suas interpretações tornaram-se antológicas; sua morte, sobre o piano e aos cinqüenta e um anos, serviu apenas para aumentar a mística em torno do pianista genial. Para Wertheimer, cuja maior obsessão em vida tornara-se o próprio Glenn Gould, o desaparecimento do amigo seria um sinal para que desse cabo de sua própria vida, já que perdia sua razão de viver, seu objeto de desejo, ao tempo em que sua irmã, cuja vida ele dominava, abandonava-o para um casamento o qual ele não pudera prever. A ambição de Wertheimer mostrara-se menor que ele próprio, a quem faltaram o talento à altura do sonho e o poder na medida de sua tirania.


BERNHARD, Thomas
O Náufrago
(trad. Sérgio Telladori)
Cia. das Letras

Bernhard faz em O náufrago um interessante estudo sobre a depressão. Por sua prosa, que busca reproduzir o pensamento do narrador – e, por isso, é repleta de idas e vindas nas quais ele rememora o passado no Mozarteum e os anos posteriores de amizade com Wertheimer e Gould –, ele conduz o leitor pelos tortuosos caminhos do pensar humano, repleto de desvios, repetições, suposições e lapsos. Pelo fluxo de consciência do narrador inominado, descobre-se, enfim, que o naufrágio de Wertheimer – cujo nome é quase uma premeditação de seu destino, à lembrança do herói romântico de Goethe – é sua própria condição de homem rico que jamais precisou lutar por seu sustento, e cujo único caminho para aplacar seu complexo de inferioridade e se sentir parte do mundo – o talento artístico – é-lhe negado ao tomar contato com a genialidade inegável de um dos maiores pianistas de seu tempo.


*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

 
Aqui, uma rara imagem: Glenn Gould executando, em estúdio, o ciclo completo das Variações Goldberg, de J. S. Bach. Pode-se ouvir o pianista murmurando a melodia, uma de suas manias. 

Conta-se que ele tinha outras excentricidades que tornava a vida dos engenheiros de gravação um purgatório: Gould preocupava-se em controlar cada aspecto do ambiente de gravação, e tinha especial implicância com a temperatura ambiente, que queria sempre "quente" - era avesso ao frio e usava luvas e casacos mesmo no verão, o que leva a crer que talvez sofresse de fibromialgia, uma doença que à época não era diagnosticada. Para sentar-se ao piano, exigia a cadeira que seu pai fizera para ele na infância.  

O pianista canadense teve um final de vida recluso, tendo encerrado sua carreira como intérprete em concertos aos trinta e um anos, dedicando-se a partir de então somente para as gravações de estúdio. Gould também foi crítico musical e ficou famoso por criar diversas "personas" ou pseudônimos através dos quais fazia críticas mordazes a diversos intérpretes de música erudita - sobretudo a ele mesmo, Glenn Gould. 

Como intérprete, angariou a simpatia e os elogios dos maiores maestros de seu tempo, ainda que seu gênio difícil fizesse com que, por vezes, faltasse aos próprios concertos - o que, segundo grandes nomes como Leonard Bernstein, era compensado por sua genialidade sem igual. Faleceu aos cinquenta anos.

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