por Diego Petrarca
Após os lançamentos da poesia
completa de Paulo Leminski e Ana Cristina César, agora é a vez do poeta e
letrista Wally Salomão ter sua obra poética reunida em livro. Poesia Total
(Companhia das Letras - 552 páginas) reúne os oito livros do autor e algumas
letras de canções nunca publicadas em livro, além de textos sobre sua obra
assinados, entre outros, por Antônio Cícero, Francisco Alvim e Davi Arriguci Jr
e Armando Freitas Filho.
Entre os títulos estão Me Segura que
eu Vou Dar um Troço, lançado em 1972 e reeditado numa edição caprichada em 2004
pela Biblioteca Nacional e a editora Aeroplano, já fora de catálogo. O livro,
escrito nas celas do Carandiru onde o poeta ficou preso num curto período por
porte de maconha, é um marco da poesia experimental dos anos 70, reunindo
anotações esparsas, manuscritos, desenhos, fotografias, composto de mosaicos e
escrita verborrágica, gênese do discurso de Wally: a poesia espalhada em prosa
e o apelo gráfico/visual resinificando o conteúdo verbal.
Outra raridade que a obra comporta é
o seu segundo livro, Gigolô de Bibelôs, lançado em 1983 pela editora
Brasiliense no selo Circo de Letras, responsável pelas edições dos chamados
poetas marginais, protagonistas da contracultura pós tropicalista dos anos 70.
O livro traz textos híbridos misturando prosa poética e poemas visuais e
apresenta algumas letras emblemáticas de canções gravadas por Gal Costa (como
Vapor Barato, parceria com Jards Macalé, que embalou muitos casais e despedidas
durante o regime militar e depois regravada pelo grupo o O Rappa, com enorme
sucesso), Mel (parceria com Caetano Veloso cantada por Maria Bethânia, que deu
nome a um disco de 1979 e tocou muito nas rádios) Anjo exterminado (outra
parceria com Macalé gravada por Bethânia), entre outras mais e menos
conhecidas. Poesia Total também resgata um perfil
criativo que Wally Salomão escreveu sobre o artista plástico Hélio Oiticcica,
Qual é Parangolé?, contaminado de uma linguagem coloquial e comentários
absolutamente pessoais de Wally sobre artes e plásticas e sobre o processo de
criação do amigo criador da instalação Tropicália, de 1964.
Poeta polifônico. É
desse modo que Wally Salomão se declarava. A matéria da sua poesia, centrada na
palavra, deixava-se conviver livremente com a visualidade, com a incorporação
da fala cotidiana na construção do poema, da utilização explícita de um
despojamento do discurso, numa busca permanente de outras formas poéticas,
estreitando as relações entre o texto e arte plástica, música, leitura em voz
alta, caligrafia, alargando as possibilidades de veiculação da expressão
poética que se realizou mais plenamente em seu trabalho como letrista. Wally
Salomão é titular na tradição de poetas que começaram publicando poemas nas
canções para depois sair nos livros, ao lado de Antônio Cícero e Torquato Neto.
Esse trânsito livre de um suporte a outro sempre fluiu com naturalidade em sua
trajetória, como disse Antônio Cícero: Wally Salomão dribla as convenções tanto
do cânone quanto dos marginais. É pioneiro pela abertura das múltiplas
possibilidades que caracteriza a chamada poesia contemporânea. A poética de
Wally agrega transe, movimento, excesso, caixa alta, sobreposições, variações
de alinhamento. A anotação esparsa complementa a criação de um novo vocábulo,
conforme seus títulos: vai da extensão de uma Lábia (1998) a contenção de seu
Armarinho de miudezas (1996): tudo o poema comporta e amalgama.
Wally Salomão |
Poeta POLIVOX, com a mesma
contundência e extravagância nas páginas dos livros quanto em sua fala
presencial. Wally é o que pode se chamar de poeta ou artista multimídia:
produziu Cássia Eller cantando Cazuza, dirigiu e deu nome ao histórico show de
Gal Costa no auge da sensualidade: FA-TAL, de 1971. Foi modelo para
intervenções fotográficas de Hélio Oiticica. Reuniu os escritos póstumos de
Torquato Neto (Últimos Dias de Paupéria, 1973) e escritos inéditos de Caetano
Veloso para uma antologia. Lia poemas no programa A Fábrica do Som, da TV
Cultura de São Paulo. Editou a revista de poesia Navilouca, em 1974, com
artistas plásticos e poetas renovando a linguagem do verso dentro e fora da
página. Foi parceiro constante de Adriana Calcanhotto a partir do disco A
Fábrica do Poema (1994), inspirado em seu poema, além de coautor de discos
inteiros (a trilha do filme Quilombo, de Cacá Diegues, parceria com Gilberto
Gil, 1984) e João Bosco (as canções do disco Zona de Fronteira, em parceria com
Antônio Cícero, 1991). Foi padrinho do grupo Afro Reggae e liderou atividades
culturais em Vigário Geral, periferia do Rio de Janeiro. Interpretou o poeta
Gregório de Mattos no cinema. Escreveu a letra de Assaltaram a Gramática (1984)
parceria com Lulu Santos, um dos primeiros sucessos radiofônicos do rock
nacional. Em 2008, foi lançado o filme Pan Cinema Permanente, um ótimo
documentário sobre o poeta dirigido por Carlos Nader.
O baiano de Jequié, filho de sírio
com sertaneja, morreu em maio de 2003 aos 59 anos, enquanto era Secretário
Nacional do Livro - Ministério da Cultura, na gestão de Gilberto Gil. Uma de
suas propostas era a inclusão do livro na cesta básica dos brasileiros. Deixou
o livro póstumo Pescados Vivos pronto, incluído agora em Poesia Total. Caetano
Veloso homenageou o amigo na canção Wally Salomão, do disco Cê (2006), esboçando uma tentativa de
definição:
Meu grande amigo
desconfiado estridente
eu sempre tive comigo
que
eras na verdade
delicado e inocente.
Poesia Total, a obra completa de
Wally Salomão, traz junto sua metáfora transbordante, que revitaliza o sentido
e faz a poesia alçar outra metas e linguagens, conforme diz o poema Olho de
Lince:
Quem fala que eu sou esquisito hermético
É porque não dou sopa, estou
sempre elétrico
Nada que se aproxima, nada me é estranho
Fulano sicrano
beltrano
Seja pedra seja planta seja bicho seja humano.
* Diego Petrarca é um dos mais profícuos e talentosos poetas da nova geração no RS, com diversas publicações no gênero. Professor de literatura e redação, ministra Oficina de Poesia na Sapere Aude! Livros. Sua próxima turma terá início no dia 10 de junho de 2014 - saiba mais em http://oficinasliterarias.wordpress.com
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