por Robertson Frizero
Caravaggio. São Gerônimo |
O trabalho de tradução é sempre falho e incompleto, pois essa é a natureza do processo de traduzir. Não há entre os idiomas - por mais que os tradutores automáticos tentem burlar isso - uma correspondência biunívoca entre vocábulos e estruturas; há aproximações, possibilidades, escolhas. Traduzir é, antes de tudo, escolher.
Não é simples a tarefa do tradutor. Há que respeitar o tom correto do texto original, as intenções do autor, a precisão vocabular possível. Mais ainda sofrem os corajosos que se dedicam a traduzir literatura e enfrentar o desafio de ler o que há por trás das escolhas do autor, as intenções ocultas, e reconstruí-las usando a língua dos leitores que, muitas vezes, jamais terão acesso aos originais daquela obra. E as palavras carregam forças ocultas, pesos aparentemente imperceptíveis mas que trabalham nos subterrâneos da compreensão do leitor, reforçando o caráter das propostas do autor original.
Os que traduzem poesia são quase-heróis.
Escrevo não como tradutor apenas, mas como leitor que ora se aventura pelo mundo espinhoso das traduções. Muitas vezes, em minhas tantas leituras de textos estrangeiros, passaram-me despercebidas essas reflexões que vi despertadas não só em meus recentes trabalhos mas, sobretudo, ao buscar no excelente Quase a Mesma Coisa, do escritor e tradutor italiano Umberto Eco, algumas respostas aos dilemas que enfrentei em minhas escolhas diárias no desafio da tradução. Como leitores, somos por vezes críticos muito ácidos do trabalho de tradução, já que mesmo sem conhecer a língua original de uma obra, é possível detectar problemas de tradução. E esquecemos que o bom tradutor jamais traduz apenas de uma língua para a outra - antes, trata-se de um processo de tradução de uma cultura para a outra, de uma época para a outra, de um público para outro. Por isso, os bons tradutores são muitas vezes os mais humildes e, ao mesmo tempo, os mais críticos em relação ao seu próprio trabalho - pois sabem que é praticamente impossível recriar em sua língua materna as sutilezas que qualquer língua estrangeira, como construtora de um outro mundo de falantes, sempre carrega.
Sei, mais que nunca, que todo tradutor é um traidor. Mas, sem esses traidores, que seria de nós, leitores, e nossas naturais limitações para ler na língua original todas as obras interessantes que há nas prateleiras mundo afora?
*Robertson Frizero é escritor, tradutor e dramaturgo. Coordena e ministra oficinas de Criação Literária na Sapere Aude! Livros, além de coordenar o Clube de Leitores da livraria.
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