por Nurit Gil
"Se beber, não dirija"
(Sabedoria popular)
- Alguém escutou a campainha?
O
papo estava tão animado, que não sabiam ao certo se o som era real ou
fruto da imaginação, após alguns - vários - goles de espumante. Eram
três casais que organizavam encontros sempre divertidos. Pediam pizza,
bebiam, gargalhavam. Falavam sobre as ações, a novela e abobrinhas em
geral, antes do papo das mulheres invariavelmente recair sobre o trio
casa-filhos-empregada. Todos casados havia mais de uma década, tinham
uma relação agradável desde os tempos de namoro, quando os meninos eram
colegas na faculdade de engenharia mecânica. Primeiro a Renata conheceu o
Rubens, depois a Paula encantou-se pelo Roger e por último, a Cristina
conquistou o Julio. Pena mesmo era o Marco, que fora passar uma
temporada na Europa e acabara ficando do lado de lá do oceano.
Justamente por isso, esta noite seria diferente: finalmente o quarteto
estaria completo e as esposas conheceriam o famoso dissidente da turma.
- Acho que tocou sim.
- Deve ser o Marcão.
Julio, o anfitrião da vez, foi abrir a porta
- ...
- Fala cara!
E
todos levantarem-se. A comoção foi geral. Não se viam desde... nossa,
uns quinze anos. Abraçaram-se, apresentaram a Rê, a Pá e a Cris.
- Senta. Que saudades. O tempo não passou para você!
- Passou, passou tão rápido que nem percebi
Marco
de fato parecia não ter sentido a passagem do tempo. Sua pele tenaz e a
barba por fazer conferiam a ele uma aparência bem jovem. Demais até.
- E o que você tem feito?
- Passei os últimos cinco anos viajando pelo continente africano, defendendo algumas causas importantes...
E
o recém-chegado passou a hora seguinte discorrendo sobre a guerra, a
miséria e as campanhas humanitárias. E - fato intrigante - sequer
escutaram a voz das mulheres.
Na
realidade, Paula estava corada, Renata não sentia as pernas e Cristina
ainda não tinha conseguido piscar os olhos. Quando a pizza chegou,
seguiram direto para a cozinha onde, pela primeira vez na última hora,
trocaram algumas palavras:
- Que homem é esse?
- Que homem!
- Uau!
Retocaram o gloss, arrumaram os cabelos, encolheram a barriga e voltaram para a sala.
No
encontro seguinte, insistiram para que convidassem o Marco. Afinal, ele
ainda tinha muito a discorrer. E as noites passaram a ser cada vez mais
elaboradas. A pizza virou bruscheta de berinjela, o gloss virou sapato
de tecido eco-sustentável e o casa-filhos-empregada,
utopia-humanitária-hypster. O novo anfitrião, cada vez mais à vontade,
ignorava todos o protocolos da classe média.
Na segurança da cozinha, as mulheres cada vez mais apaixonadas.
Não apaixonadas, encantadas.
Não encantadas, intrigadas.
E
discorriam sobre todo o tipo de papo normalmente reservado a banheiros
femininos. Não podiam furtar-se de trair em pensamento, imaginando a
vida ao lado daquele ser de charme intelecto-neandertal, comendo tofu no
café da manhã, amando loucamente segundo os preceitos do tantra e
discutindo política em mesas de botecos, dentre outros pormenores
fantasiosos.
Uma noite, Marco anunciou que traria sua nova namorada, Luciclei.
- Luciclei?
- Ahã. O que tem? - Perguntou Julio.
- Não, nada.
Quando
abriram a porta, Luciclei apareceu, de mini vestido vermelho, cabelo
loiro platinado pela cintura e risada extravagante. Durante a noite,
discorreu sobre a novela, a nova namorada do Rodrigo Santoro e como
evitar rasgos em meia calças. Todos apenas escutavam.
Na
realidade, Julio estava corado, Rubens não sentia as pernas, Roger
ainda não tinha conseguido piscar os olhos e Marco não desviava o olhar
do decote vermelho. Foram apenas interrompidos com um bate-papo vindo
diretamente da cozinha. Achavam ter escutado "logo o Marco".
- Que?
- Nada, é que o risoto de pupunha queimou.
- Queimou?
Foi quando Cristina reapareceu, já de pantufas:
- Pois é. Todos comem pizza de catupiry?
*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.
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