por Mires Batista Bender
Num
de seus romances mais famosos, Memórias
póstumas de Brás Cubas (publicado em 1881), Machado de Assis apresenta a
tese do filósofo Joaquim Borba dos Santos, o Quincas Borba, nomeada Humanitismo.
O
Humanitismo – que pode ser visto como um paralelo da teoria da seleção natural,
lançada por Charles Darwin entre 1842 e
1844 – está baseado na sobrevivência dos
mais aptos e enxerga a guerra como forma de seleção da espécie. A filosofia de
Quincas Borba afirma que a substância da qual emanam e para a qual convergem
todas as coisas é Humanitas. Portanto, Humanitas é o princípio único de tudo o
que existe. Sua teoria é mais amplamente explorada no romance que Machado
publica em 1891, Quincas Borba. Para
explicá-la, a personagem de Quincas Borba criou a frase: “Ao vencedor as
batatas!”
No sexto capítulo de Quincas Borba, Machado de Assis dá voz
ao filósofo para que ensine ao amigo Rubião seus conceitos filosóficos:
“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas
chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a
montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas
tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se
suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a
guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos.
Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os
demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações
não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que
lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa
canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao
vencedor, as batatas”.
O
sentido dessa expressão é sintetizado na trama do romance, em que Machado de
Assis apresenta um quadro da vida na cidade moderna com suas possibilidades e
armadilhas.
Rubião
é um modesto habitante do interior de Minas Gerais, que recebe uma fortuna
deixada por seu amigo Quincas Borba e decide ir viver no Rio de Janeiro. Quando
chega de trem à cidade em que sonhava “fartar-se do banquete da vida”, traz na
bagagem sua ingenuidade, sua inexperiência, e a disposição para pôr à prova a
filosofia ensinada por Quincas Borba: o Humanitismo.
Na
parada em uma das estações, conhece aquele que seria seu cicerone pelos
caminhos da nova cidade, Cristiano Palha, que viaja com a mulher Sofia e que se
interessa por Rubião assim que percebe o milionário ingênuo a quem poderia
explorar financeiramente. Encantado pela cordialidade do novo amigo e também
pela exuberante beleza de sua esposa, Rubião passa a frequentar sua casa e
acaba por confiar ao Palha o total controle e administração de sua fortuna.
Assim
como este, outros contatos que travará irão expor Rubião às manobras de
oportunistas que se aproximarão dele como aves de rapina, dispostos a tomar
proveito para si. Um jogo de
interesses irá orientar todas as ações das
personagens, independentemente de sua posição social ou econômica. Neste
contexto, vai se desenrolar um desfile de “máscaras” ostentadas em favor da
dissimulação das reais intenções de cada um. De acordo com Raymundo Faoro, Machado “concebeu as
estruturas sociais como se movidas por sentimentos e paixões individuais”.
Aos poucos, a vida na cidade grande vai
revelando um jogo de aparências e de disputas a que o mineiro de Barbacena não
está acostumado. O processo de coisificação a que Rubião é submetido irá
levá-lo à degradação, à perda da sua fortuna, de sua identidade e, por fim, da
própria sanidade mental. O herói que quer conquistar a grande
cidade mostra-se incapaz de decifrar seus códigos e é devorado por ela. Nem mesmo
chegará a desvendar o enigma ocultado na filosofia que o amigo Quincas Borba
lhe deixou como herança: “Ao vencedor, as batatas!”. A solidão será seu prêmio
por uma luta sem sentido, em que a sobrevivência do mais apto não trará glória
a nenhum dos combatentes, apenas “batatas”.
Vencido
pelos mais fortes, Rubião perde-se entre as engrenagens da máquina da vida
moderna e, instintivamente, busca seu primitivo lugar no mundo, o espaço de
suas origens. No retorno para a sua provinciana Barbacena, no interior de Minas
Gerais, irá procurar o acolhimento que a cidade grande lhe negou. Mas, como nos
versos de Drummond, “quer ir para Minas,/ Minas não há mais./ José, e agora?”
* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...
O tema do interiorano ingênuo confrontado com a cidade grande porém selvagem, já me parece um ótimo tema. Coloquei na lista para leitura.
ResponderExcluirAs máscaras humanas, o progresso ditando as regras, o interesse comandando as atitudes das pessoas, os reais valores substituídos pelas mercadorias e tudo na exuberante paisagem do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, que gostaria de ser Paris. Acho que vais gostar de mais uma do nosso "mestre na periferia do capitalismo". Boa leitura, Jader!
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