por Mires Batista Bender
O filme de Glauber Rocha, um ícone do Cinema Novo brasileiro, foi produzido em 1966 e estreado em 1967, poucos anos após o golpe militar. Glauber registra a luta das esquerdas brasileiras, contrárias ao golpe, e expressa uma crítica aberta a todos os que participaram do processo de instauração da Ditadura. Suas personagens são como metáforas das diferentes tendências políticas presentes no Brasil daquele período, configurando o próprio mito da luta entre o povo e o poder.
O protagonista, Paulo Martins, é jornalista
e poeta idealista, ligado a um político conservador em ascensão, de quem se
afasta para apoiar um novo líder político, supostamente progressista. Assim que
ganha as eleições seu apoiado se mostra corrupto e controlado pelas forças
econômicas locais. Paulo Martins, desiludido, ainda tenta se aliar a outras instâncias
políticas, na esperança de operar transformações sociais no País, porém é
traído e acaba por fazer opção pela luta armada.
O filme inicia em flash-back, mostrando a angústia de Paulo Martins, diante do
fracasso em realizar seu sonho político. A primeira cena apresenta o excerto de
um poema, que surge escrito na tela, tendo ao fundo Paulo Martins portando uma
metralhadora em posição que denota desalento e dor.
O poema escolhido por Glauber Rocha, como
epígrafe para a cena, é do poeta brasileiro Mário Faustino, “Balada”, publicado
em 1955. Faustino (1930-1962) foi poeta, ensaísta, professor, tradutor e
jornalista, tendo atuado como adido cultural do Jornal do Brasil na ONU em 1960. O texto mostrado no filme é uma
montagem, usando os versos 1, 2, 7 e 8 da primeira estrofe do poema.
O poema de Faustino é uma elegia (canto em
honra dos mortos) e refere ao suicídio de um poeta, por não conseguir manter a
pureza de sua alma diante da corrupção humana. Glauber Rocha emprega a imagem
que o poema projeta, para representar o ambiente de “vitória do caos sobre a
vontade augusta” durante os chamados “anos de chumbo” brasileiros.
O roteiro de Terra em Transe traz a presença constante do texto poético, quer
como recurso linguístico, pontuação narrativa ou expressando o fluxo de
consciência do protagonista. De acordo com o crítico de arte, Paulo Emílio
Salles Gomes, “o cosmo sangrento e a alma pura, violência e ternura, são os
polos extremos em torno dos quais Terra
em Transe gira”. No poema de Faustino o eu-lírico recupera a figura do
gladiador romano – que encarava com dignidade o destino fatal – e, “defunto mas
intacto”, lida com o fracasso praticando um gesto que entende ser de
insubmissão: a própria morte.
Em entrevista à revista Positif, Glauber Rocha declarou: “Mário Faustino foi o maior poeta
brasileiro de minha geração. [...] coloquei (o poema) em meu filme, como
homenagem; ele era um pouco como Paulo Martins” (publicada em: ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de
Janeiro: Alhambra/ Embrafilme, 1981, p. 89).
* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...
E Glauber era, por sua vez, um tanto poeta na forma de filmar, ator de si mesmo, parecia estar sempre em cena, e guerrilheiro da sétima arte, porque agudo, e revolucionário.
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