por Nurit Gil
Da janela da área de serviço, conseguia enxergar o que se passava no apartamento dos vizinhos. Era a parte lateral do pequeno edifício e onde encontravam-se os estendedores de roupas do 101 ao 804.
Sabia, por exemplo, que a vizinha do 502 era artista, pelos aventais manchados de tinta. O casal do 404 era metódico, combinavam sempre os pijamas e a roupa de cama. O estendedor na janela do senhor do 704, quase sempre vazia, denunciava que ele devia mandar as roupas para uma lavanderia ou simplesmente, a esta altura da vida, tinha desistido de cheirar a sabão em pó. A vizinha ruiva do 303 - intrigante - lavava apenas lingerie. A família do 201 tinha acabado de aumentar. O rapaz do 703 terminara um relacionamento. O extravagante músico do 803 misturava roupas coloridas às brancas na máquina de lavar. A senhora de meia idade do 202 aumentara consideravelmente o tamanho dos seios. Os recém casados do 401 eram fãs de chantilly. E Ana imaginava se os vizinhos também conseguiam desvendar pequenos detalhes da vida dela analisando seu varal, monótono, coberto de roupas de tom bege.
O curioso, no entanto, é que apesar da intimidade exposta no edifício Saint Tropez, os vizinhos cumprimentavam-se apenas com um aceno de cabeça e no máximo um "Esfriou, né?" ao cruzarem-se nos corredores, no elevador ou na garagem. Sabiam a cor da roupa íntima que o outro usava, detalhes de sua vida privada, de sua situação estomacal, mas não ousavam cruzar a barreira do manual politicamente correto da impessoal vida em cidade grande:
- Olá.
- Boa noite.
- Tchau.
- Até mais.
Então chegou o dia da reunião de condomínio, que ocorria a cada seis meses sempre convocada pelo síndico, o senhor de poucas roupas no varal. Ana desceu de roupa bege e um rabo de cavalo, exatamente como seu varal sugeriria a um vizinho mais atento.
Foi lida a pauta do encontro e, após definirem repintar o teto azul do hall, podar o Ficus da entrada e escolher um local apropriado para o carrinho de compras, abriram o espaço para assuntos gerais. O rapaz do 703 começou:
- Temos vizinhos que não respeitam o horário de silêncio...
- Ih começou!
- Sim, comecei. Gosto de dormir cedo.
- Cara, é minha profissão. Pior você, que não recolhe as necessidades de seu cão na calçada.
A senhora dos seios grandes entrou no debate:
- Não critiquem os animais, não critiquem os animais.
- Ah é, minha senhora? E seu papagaio que imita o som de assoar o nariz?
- Imita do vizinho de cima.
- Eu?
- Sim. Poderia ser mais silencioso, não?
- Minhas intimidades não dizem respeito a você.
E os ânimos começaram a se exaltar. Levantaram-se, xingaram gerações anteriores e futuras, apontaram o dedo para imperfeições diversas. Ana permanecia observando. Até que pisaram em seu calo:
- Culpa da vizinha bege!
- Eu?
- Sim. Sua cantoria no banheiro é absolutamente irritante.
- Irritante é olhar suas calcinhas minúsculas e multicoloridas dia após dia!
- Invejosa!
- Exibida!
No instante seguinte, estavam rolando pelo chão, puxando os cabelos uma da outra. A vizinha da lingerie teve um apoio maciço do público masculino, o que deixou a noiva do 401 visivelmente alterada (provavelmente esta noite não teria chantilly). O síndico pediu a palavra:
- Agradeço a presença de todos, mas já são dez da noite. Assuntos pendentes serão tratados na próxima reunião e assim, dou por encerrado este encontro.
Todos levantaram-se, pegaram seus pertences e saíram porta afora. Dividiram o corredor e o elevador como desconhecidos, com rostos plácidos e seguindo o protocolo politicamente correto da vida em cidade grande, despediram-se:
- Boa noite.
- Tchau.
Ana entrou em seu apartamento e foi direto recolher as roupas do varal. 'Vizinha bege' era demais, a sirigaita do 303 que aguardasse a próxima reunião. E até mais.
*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.
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