por Ademir Furtado
Paulo Scott |
As relações entre
literatura e realidade são tão antigas quanto a arte de narrar. Para uma
corrente dos estudos literários influenciada pela poética clássica, o objeto
privilegiado da literatura é a realidade. A literatura, portanto, seria uma
imitação do mundo real. Depois, com o desenvolvimento dos estudos sobre a
linguagem, o conceito de real foi questionado e denunciado como mera
representação que depende do ponto de vista, uma construção retórica com muita
influência da subjetividade. Entretanto, a desconfiança do status de real não
destruiu de maneira definitiva alguns elementos fundamentais da arte literária,
entre eles o personagem. E a menos que se trate de alguma experimentação
bizarra, o personagem será sempre um ser humano. O problema é que um ser humano não vive
sozinho no planeta. Ele precisa de interação com outros da mesma espécie, o que
resulta na existência de conflitos, outro elemento que nem as experiências mais
extravagantes da literatura moderna conseguiram abolir. Acrescente-se que os
conflitos se estabelecem porque as pessoas precisam agir para se manterem
vivas. Então, existe um objeto que pode ser definido, sem nenhuma hesitação,
como real: as ações humanas. Motivos e significações de uma atitude podem ser
questionados, mas não há como duvidar do caráter real de uma ação ocorrida num
determinado local e num momento do tempo. Já é um começo.
E aqui retornamos ao princípio
de tudo. Aristóteles, na Poética, afirma que as ações humanas são o objeto
privilegiado da narrativa, pois é pela ação, e não pelo caráter, que o
indivíduo determina sua boa ou má sorte. Ora, uma ação humana sempre produz uma
conseqüência, que gera um acontecimento, que vira história.
Tantas divagações com
pretensão de filosofia surgiram com a leitura do livro Habitante irreal, de
Paulo Scott. Obra publicada no final de 2011, já teve resenha no Caderno
Cultura da Zero Hora, na revista Bravo, e foi matéria de capa do jornal
Rascunho, só para citar os que eu li. Essa grande divulgação na imprensa já
demonstrou o valor da obra e ressaltou suas principais características, o que
me isenta de discorrer sobre detalhes da narrativa. Minha intenção é apenas
assinalar um aspecto que, na minha opinião, constitui um dos maiores méritos do
livro – não o único, com certeza. O fato
de abordar a história recente do Brasil. Não sei porquê, - e isso é algo que merece uma investigação mais
profunda, - a literatura brasileira, e
principalmente a do Rio Grande do Sul, não se ocupa muito da história atual do
Brasil. Com a ressalva de que eu posso estar desatualizado, um caso raro nos
últimas anos aqui nos pampas é o romance Quem faz gemer a terra, de Charles
Kiefer, que a partir de um episódio policial ocorrido em Porto Alegre, mostrou
sua visão do Movimento dos Sem Terra. No mais das vezes, a história só aparece
na literatura como um passado distante, sem nenhuma ligação com o presente, um recorte
isolado numa linha de tempo, esterilizado por convenções literárias, um passado
sobre o qual é muito fácil se posicionar, pois já teve sua dimensão definida e
consolidada pelo mundo acadêmico.
Nesse contexto, o livro de
Paulo Scott aparece como uma provocação. Se é verdade que a arte re-apresenta a
realidade, quantos brasileiros desiludidos com antigas utopias não encontram no
Paulo-personagem o eco da própria decepção? E quantos não verão em Donato uma
cópia da geração de jovens contemporâneos carentes de representação legal,
abandonados por lideranças políticas de outrora, hoje tão ocupadas nas disputas
de cargos e poder.
Há quem diga que a
literatura possui um conhecimento próprio, que só ela consegue transmitir. E
aqui voltamos mais uma vez a Aristóteles quando ele afirma que “nós contemplamos com prazer as imagens mais
exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância”. Talvez a
realidade atual seja por demais complexa, cruel e cansativa para ser enfrentada
sem temores. Por isso, a importância de escritores que, como alternativa ao
mero entretenimento livresco, ousam abordar as trajetórias humanas assim como
elas ocorrem na vida das pessoas reais do presente. A literatura assim é mais
viva, mais real.
*Ademir Furtado é escritor. Seu romance "Se eu olhar para trás" foi publicado pela Dublinense em 2011. Ademir é também um dos mais assíduos frequentadores do Clube de Leitores da Sapere Aude! Livros e mantém o site http://www.ademirfurtado.com.br.
*Ademir Furtado é escritor. Seu romance "Se eu olhar para trás" foi publicado pela Dublinense em 2011. Ademir é também um dos mais assíduos frequentadores do Clube de Leitores da Sapere Aude! Livros e mantém o site http://www.ademirfurtado.com.br.
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