por Mires Batista Bender
Por volta do ano de 1851, foi publicado o
livro Últimos cantos, de autoria do
romântico considerado o primeiro escritor autenticamente brasileiro.
O maranhense Gonçalves Dias, então com 28
anos, já publicara poemas e dramas. Consagrado como grande poeta lírico, também
se destacava por expressar manifestações da cultura indígena.
Do livro Últimos
cantos é o poema “I-juca Pirama”. Composição lírica, os versos têm como
tema central o drama vivido pelo último descendente da tribo Tupi, no momento
de sua morte. O título do poema é tirado da língua
tupi e significa “o que há de ser morto”.
Aprisionado por uma tribo antropófaga e
estando prestes a ser comido por seus algozes – que o reconhecem como um bravo
cujos valores devem ser assimilados pela tribo – o guerreiro sacrifica sua
honra ao pedir clemência ao inimigo, dizendo-se arrimo de um pai cego, velho e
doente.
Ao escutarem seu pedido, os Timbiras o
consideram um fraco, portanto indigno de ter sua carne integrada a deles.
Assim, permitem que parta. Seu pai, quando percebe que o filho fora prisioneiro
e não morrera, cobre-se de vergonha e vai à aldeia inimiga, exigindo que se
cumpra a regra. I-Juca Pirama, não podendo suportar o desprezo do pai, lança-se
em uma luta feroz, desafiando toda a tribo Timbira.
A honradez do guerreiro Tupi é restaurada e
fica gravada na história da tribo, que agora ouve na voz de um ancião, suas
memórias, relatando aos jovens Timbiras a bravura do inimigo. Ao final, o velho
brada: “meninos, eu vi!”
O poema de Gonçalves Dias, relatando a
tradição indigena, suas personagens, ritos e lendas, ressalta os códigos, a coragem e o zelo pela
honra. Sua visão é a da bondade natural dos povos primitivos, apresentada por
Montaigne nos Ensaios, in “Des
Cannibales”. Esta imagem do índio, integrado ao seu ambiente natural e à conduta
do “bom selvagem”, serve ao modelo de Nação que os românticos pretendem formar
através da literatura. A “cor local” dá sentido a uma expressão genuinamente brasileira.
Em 1869, o gaúcho José Bernardino dos Santos
publicou a peça Quadros da vida selvagem
– Y-Juca Pirama, poesia de A. Gonçalves Dias.
Nos versos de José Bernardino, pode-se
identificar a clara homenagem ao poeta maranhense. No “I-Juca Pirama” gaúcho, tanto
as personagens quanto a aventura relatada por Gonçalves Dias repetem-se. Também
o período e o cenário são os mesmos: início do século XVII, nos sertões de
Maranhão.
De acordo com a pesquisadora Maria Eunice
Moreira , “há uma única cena em que os dois textos diferem: falta ao drama de
Bernardino a recordação de ‘um velho Timbira, coberto de glória / [que] Guardou
a memória / Do moço guerreiro, do velho Tupi!’, como escreveu Gonçalves Dias”.
O
principal aspecto de união entre o texto de Gonçalves Dias e o de Bernardino é
o desejo comum de criar um espírito de nacionalidade através da literatura. Os
escritores românticos visavam apropriar-se da natureza como o grande símbolo
para representar o local e estabelecer um modelo original, brasileiro. O
ingrediente indispensável a este projeto era o realce das características de
cada uma das regiões brasileiras. O poema de Bernardino configura a adesão da
expressão literária gaúcha ao projeto romântico, embora assuma a paisagem
“nacional” e a simbólica figura do indígena.
Ainda
segundo a pesquisadora de história da literatura, “no Rio Grande, o índio de
Gonçalves Dias foi cantado e serviu de modelo para o exercício poético, mas
logo ficou compreensível que ele deveria ser substituído por outro tipo – o
gaúcho”.
A “cor
local” do espaço geográfico gaúcho seria tornanda literária pelos escritores
sul-riograndenses, logo a seguir, no romance de
Apolinário Porto Alegre, O
vaqueano, publicado em 1872 (antes dele, já se apresentava o cenário da
campanha no primeiro romance aqui impresso em 1847, A divina pastora, de Caldre Fião. Porém, o romance de Caldre Fião
esteve desaparecido por 147 anos).
Foi pela expressão
do que é peculiar nas especificidades locais, que a representação do nacional
se fez ideal aos primeiros ficcionistas gaúchos. Através de características
regionais e da valorização da temática da campanha – o pampa, a atividade
pastoril, as lutas de fronteira – a literatura gaúcha pode ser representativa
da alma da pátria, como queriam os escritores do Romantismo.
* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...
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