por Patrícia Degani
er acesso às fontes originais da mitologia e do folclore pode ser um problema para o leitor brasileiro. Não é fácil conseguir versões em português de obras como o Mabinogion (lendas galesas), o Beowulf, as Eddas (lendas nórdicas), o Kalevala (épico da Finlândia) e muitas outras que serviram de referência para escritores de fantasia consagrados como J. R. R. Tolkien ou C. S. Lewis.
Em primeiro lugar, esses textos originais estão escritos em línguas antigas ou incomuns, como latim, grego, gaélico, islandês, anglo-saxão, etc. O professor Tolkien conseguia lê-los no original, mas é por isso que ele era um catedrático de Oxford. A segunda opção é ler uma boa tradução direto do original.
Traduzir é tarefa difícil e que requer muito conhecimento, não só de idiomas, mas também de história, cultura, etc. Quando o tradutor não tem nem busca esse conhecimento, e nem tem alguma noção do idioma original, acontecem coisas inacreditáveis.
Vou dar apenas um pequeno exemplo. Na Roma Antiga, o Imperador era chamado de tu. Santo Agostinho, já na transição entre Antiguidade e Idade Média, chama Deus de tu na sua obra mais conhecida, As Confissões. Isso porque no latim vós é simplesmente o plural de tu. Se o bispo de Hipona chamasse Deus de vós, seria acusado de politeísta.
Os reis não foram sempre tratados por vós ou por majestade. O tratamento usual na Idade Média era Sua Graça. Até onde sei, foi Henrique VIII (aquele da minissérie dos Tudors) que exigiu ser tratado de Majestade pela primeira vez. e ele é um rei do Renascimento...
O uso do "nós" e do "vós" para referir-se a reis está ligado a autores de teorias absolutistas da monarquia, entre eles Thomas Hobbes e sua obra O Leviatã (The Leviathan). Se você observar com cuidado o rei que está no topo da página do livro, verá que ele é feito de pequenas pessoas. Essas pessoas representam o conjunto dos seus súditos. O monarca absoluto encarnaria, assim, o conjunto das vontades de seus súditos. Ele seria a Vontade Geral e por isso poderia dizer "nós, a França", como Luís XIV.
Detalhe da capa original de Leviatã, de Thomas Hobbes. |
Imagem galo-romana da deusa Epona. Musée Lorrain, Nancy. Foto: Marsyas, Wikimedia Commons. |
"Mas eu só quero ler a história!" Claro que sim. Uma das graças em ler essas histórias é que elas pertencem a culturas muito diferentes da nossa. São histórias estranhas - as coisas não acontecem como esperamos e a moral que os personagens seguem não é a moral judaico-cristã. Uma tradução que não venha do original acaba perdendo essas sutilezas e deixa tudo com a mesma cara de sempre. Não é justamente essa uma das críticas que se faz aos blockbusters norte-americanos? Um bom exemplo são os contos dos Irmãos Grimm. Visite a página da Karin Volobuef para ter uma ideia de como a tradução muda um texto. Os contos de fada que você acha que conhece não são aqueles que você viu no desenho da Disney. Segundo Karin, a edição com a tradução mais literal e próxima do texto é: GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Os contos de Grimm. Tradução de Tatiana Belinky. 6. ed. São Paulo: Paulus, 1989. Faça a experiência, você vai se surpreender.
*Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos, pela qual ministrará, no dia 25 de outubro próximo, o curso ESCREVENDO FANTASIA, que está com as inscrições abertas.
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