
Em primeiro lugar, esses textos originais estão escritos em línguas antigas ou incomuns, como latim, grego, gaélico, islandês, anglo-saxão, etc. O professor Tolkien conseguia lê-los no original, mas é por isso que ele era um catedrático de Oxford. A segunda opção é ler uma boa tradução direto do original.
Traduzir é tarefa difícil e que requer muito conhecimento, não só de idiomas, mas também de história, cultura, etc. Quando o tradutor não tem nem busca esse conhecimento, e nem tem alguma noção do idioma original, acontecem coisas inacreditáveis.
Vou dar apenas um pequeno exemplo. Na Roma Antiga, o Imperador era chamado de
tu. Santo Agostinho, já na transição entre Antiguidade e Idade Média, chama Deus de
tu na sua obra mais conhecida,
As Confissões. Isso porque no latim
vós é simplesmente o plural de
tu. Se o bispo de Hipona chamasse Deus de
vós, seria acusado de politeísta.
Os reis não foram sempre tratados por
vós ou por
majestade. O tratamento usual na Idade Média era
Sua Graça. Até onde sei, foi Henrique VIII (aquele da minissérie dos Tudors) que exigiu ser tratado de Majestade pela primeira vez. e ele é um rei do Renascimento...
O uso do "nós" e do "vós" para referir-se a reis está ligado a autores de teorias absolutistas da monarquia, entre eles Thomas Hobbes e sua obra O Leviatã (The Leviathan). Se você observar com cuidado o rei que está no topo da página do livro, verá que ele é feito de pequenas pessoas. Essas pessoas representam o conjunto dos seus súditos. O monarca absoluto encarnaria, assim, o conjunto das vontades de seus súditos. Ele seria a Vontade Geral e por isso poderia dizer "nós, a França", como Luís XIV.
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Detalhe da capa original de Leviatã, de Thomas Hobbes. |
Acontece que essa é uma construção típica da Idade Moderna na Europa Ocidental. Tradutores descuidados carregam esses cacoetes para todas as culturas e todas as épocas, dando a falsa impressão de que todos os reis sempre foram iguais, tratados da mesma forma, tiveram as mesmas prerrogativas e sempre usaram manto vermelho com pele de arminho e coroas gigantescas na cabeça. Pois é, o rei medieval francês São Luís ou Luís IX (1214-1230) gostava de
usar roupas azuis, em homenagem à Virgem Maria.
Recuando ainda mais,
anax (ἄναξ) não é a mesma coisa que
basileus (βασιλεύς) nos poemas homéricos. Na Ilíada,
anax é reservado para os líderes máximos (Agamemnon e Príamo) enquanto os outros chefes tribais ou reis menores são tratados por
basileis. Além disso,
anax é um termo mais antigo, referente à cultura micênica. Todas essas palavras seriam traduzidas por
rei, porém o que isso implica em cada caso é muito diferente. Pelo que se sabe até agora, os reis arcaicos gregos não tinham as mesmas prerrogativas e viviam mais modestamente do que o rei
anax/wanax micênico que os precedeu. Quem tiver interesse em saber mais sobre a Grécia Antiga, recomendo o ótimo videocurso de um grande especialista, Donald Keegan, da Yale University (
Introdução à História da Grécia Antiga).
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Imagem galo-romana da deusa Epona.
Musée Lorrain, Nancy.
Foto: Marsyas, Wikimedia Commons. |
Então o leitor brasileiro vai ler um texto sobre os antigos celtas, que tinham líderes tribais e lê coisas como "Alteza", gente chamando o
chieftain de
vós e por aí vai. É provável que os "reis" que aparecem no
Mabinogion, por exemplo, sejam versões folclorizadas dos antigos deuses celtas. Rhiannon, uma das personagens dos contos sobre Pwyll, Príncipe de Dyved, é provavelmente uma representação de
Epona, deusa galo-romana, protetora dos cavalos. Por isso é que em um dos contos a punição para um suposto crime de Rhiannon é ter que se oferecer para carregar as pessoas nas costas.
"Mas eu só quero ler a história!" Claro que sim. Uma das graças em ler essas histórias é que elas pertencem a culturas muito diferentes da nossa. São histórias estranhas - as coisas não acontecem como esperamos e a moral que os personagens seguem não é a moral judaico-cristã. Uma tradução que não venha do original acaba perdendo essas sutilezas e deixa tudo com a mesma cara de sempre. Não é justamente essa uma das críticas que se faz aos
blockbusters norte-americanos? Um bom exemplo são os contos dos Irmãos Grimm. Visite a
página da Karin Volobuef para ter uma ideia de como a tradução muda um texto. Os contos de fada que você acha que conhece não são aqueles que você viu no desenho da Disney. Segundo Karin, a edição com a tradução mais literal e próxima do texto é:
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm.
Os contos de Grimm. Tradução de Tatiana Belinky. 6. ed. São Paulo: Paulus, 1989.
Faça a experiência, você vai se surpreender.
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