escritor George R. R. Martin escreveu a série de fantasia que mais chamou atenção nos últimos tempos:
As Crônicas de Gelo e Fogo (
A Song of Ice and Fire), também conhecida como
Guerra dos Tronos, sua adaptação para a TV a cabo pela HBO.
Martin, durante muito tempo roteirista de televisão, resolveu escrever tudo o que os produtores não deixavam que fizesse por conta dos custos: um elenco gigantesco, muitas externas, várias cenas de batalha, e assim por diante. (para referência, visitem o site do autor,
Not A Blog).
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George R. R. Martin |
Os méritos de Martin são muitos, a começar pela capacidade de escrever diferentes pontos de vista - cada capítulo representa um personagem - e conceber uma história com muitos arcos e subtramas.
O leitor ingênuo de Fantasia muitas vezes acha que os escritores conseguem criar mundos do nada,
ex nihilo. O verdadeiro mérito desses escritores não é esse, e sim, saber aproveitar e recombinar elementos de histórias anteriores para criar algo totalmente seu.
[caption id="attachment_55" align="aligncenter" width="215"] Uma Canção de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire). (Foto: Amazon)[/caption]
Uma lista concisa, porém bastante completa de influências, está no verbete em inglês da série
Game of Thrones na Wikipedia (abaixo em tradução livre):
Os locais, personagens e elementos narrativos dos livros e da série de TV são derivados de um vasto repertório de períodos da história europeia. A inspiração principal para os livros foi a Guerra das Rosas na Inglaterra (1455-1485) entre as casas Lancaster e York, espelhadas por Martin nas casas Lannister e Stark. Boa parte de Westeros, com seus castelos e torneios de cavaleiros, é baseada na Alta Idade Média. Por exemplo, a manipuladora Cersei lembra Isabel Capeto (1295-1358) a "loba de França". Mas a série também combina influências variadas como a Muralha de Adriano (que se transformou na Muralha de gelo de Martin), a queda de Roma e a lenda da Atlântida (antiga Valyria), o "Fogo Grego" de Bizâncio (chamado de "fogovivo/wildfire"), as sagas islandesas do período Viking (os Nascidos do Ferro - Ironborn) e as hordas mongóis (os Dothraki), bem como elementos da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e do Renascimento Italiano (1400-1500).
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Brasões da Guerra das Rosas. (Foto: Armazém de Idéias)
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Para saber um pouco mais sobre a Guerra das Rosas (1455 - 1485) recomendo esta explicação sucinta neste site de portugal,
Armazém de Idéias. O texto está depois do subtítulo
A Centralização Monárquica Inglesa. O fim dos trinta anos de guerra das Rosas se deu com o casamento de Henrique de Lancaster com Isabel de York, gerando a Casa dos Tudors.
Sobre os Tudors, há uma ótima minissérie (
The Tudors - 2007-2010) protagonizada pelo ator Jonathan Rhys-Meyers no papel de Henrique VIII.
Um acontecimento diretamente inspirado em fatos da Idade Média e do Renascimento é o episódio do
Casamento Vermelho/
Red Wedding. Como a minissérie ainda não chegou nesse ponto, não vou explicar muito para não estragar a surpresa dos telespectadores da HBO.
O autor teria declarado em entrevista que a principal inspiração seria o episódio histórico do Jantar Negro (
The Black Dinner). Em 1440, o sexto Conde de Douglas foi convidado para jantar com o jovem rei da Escócia, então com apenas dez anos. Um touro negro foi exibido no jantar e o desfecho foi, digamos, surpreendente. Quem quiser saber mais pode conferir o pequeno verbete da Wikipedia em inglês sobre o
Clã Douglas.
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Al Pacino em Ricardo III - um ensaio (Foto: Sundance Channel) |
Outra fonte provável é a
Noite de São Bartolomeu, fato ocorrido em 1572 na França durante o casamento de Henrique de Navarra e Marguerite de Valois. As bodas foram retratadas no filme francês
A Rainha Margot a partir do romance histórico de Alexandre Dumas. O filme tem uma reconstituição histórica muito boa e mostra bem o conflito entre católicos e protestantes.
Outra possível inspiração para Martin é o rei Ricardo III, da casa de York. Em fevereiro de 2013 os restos mortais desse rei foram encontrados embaixo de um estacionamento (veja
reportagem da BBC). Ricardo III é o personagem principal de uma peça de William Shakespeare. Uma fala do personagem ficou muito famosa; é quando perdido em um campo de batalha, Ricardo grita:"Meu reino! Meu reino por um cavalo!". O rei morto tinha um sério problema de coluna, agora confirmado pelos exames dos peritos feitos nos seus restos mortais. Shakespeare o descreve como corcunda. Assim, Ricardo III parece ser a fonte de inspiração do personagem Tyrion Lannister. Nesse caso, Martin trocou-o de casa e de deficiência, mas manteve a inteligência e a fome de poder.
Existe uma adaptação da peça de Shakespeare para a década de 30 com Sir Ian McKellen no papel principal (
Richard III, 1995) e um
workshop de Al Pacino que foi filmado sobre o processo de adaptação (
Ricardo III, um ensaio, 1996. Título original:
Looking for Richard). Em ambos Ricardo é retratado como um mau sujeito, sobretudo por causa do episódio da Torre com os jovens príncipes (pesquisem a respeito: pode ser um possível desfecho que Martin guarda para os príncipes Tommen e Myrcella). Mas convém lembrar que a peça foi escrita sob o patrocínio dos Tudors e pode ter sido injusta com o antigo rei da Casa de York.
A estas referências eu acrescentaria várias outras. Por exemplo, há semelhanças entre a cultura de
Dorne e a França medieval e renascentista, como uma certa tolerância para com os amores extraconjugais (
paramours) e os conquistadores
Targaryen lembram os franco-normandos que invadiram a Inglaterra em 1066 liderados por Guilherme, o Conquistador, e substituíram a nobreza anglo-saxã. Não por acaso os príncipes de
Dorne são aliados dos
Targaryen, assim como os descendentes diretos de Guilherme se sentiam mais ligados à França que à Inglaterra.
Os selvagens (
wildlings) seriam uma representação dos pictos e os
Primeiros Homens (
First Men) dos celtas; já os
Andals, por serem loiros, seriam uma metáfora dos saxões, tendo seu nome tirado dos Vândalos (
Vandals, em inglês), tribo germânica que invadiu o norte da África no final do Império Romano. Assim as principais etnias que compunham a Inglaterra medieval estariam representadas no mundo de Martin, na ordem das suas respectivas ocupações do território. Outras referências seriam a ilha de Tarth como metáfora da Irlanda (Ilha Esmeralda) e os clãs ao redor do castelo dos Arryn como antigos clãs escoceses.
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Casas de Westeros. (Foto: aplicativo Wallble) |
No plano religioso, a religião dos Sete seria uma metáfora do catolicismo medieval (a religião da Trindade) e a religião antiga, dos cultos druídicos celtas (adoração de árvores, fontes, etc.). O culto do deus afogado (
Drowned God) dos
Nascidos do Ferro seria uma homenagem de Martin ao escritor H. P. Lovecraft e o seu conto
O Chamado de Cthulhu (
The Call of Cthutlhu). A religião de
R'hllor estaria relacionada com o Zoroastrismo persa, com sua forte dualidade (deus do Bem x deus do Mal) e a existência de Templos do Fogo. Vale lembrar que o Zoroastrismo real está longe de ser algo pavoroso como o culto ficcional de
R'hllor.
Para os aficcionados de história da Idade Média e do Renascimento, ler Martin é um prazer em dobro, uma vez que é sempre possível sentir ecos de histórias que já conhecemos, porém com elementos novos e outros desfechos.
*Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos, pela qual ministrará, em outubro próximo, o curso ESCREVENDO FANTASIA.
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