sexta-feira, 31 de maio de 2013

Felipe Montero e a diabólica duplicidade da vida

Carlos Fuentes
Carlos Fuentes
A natureza dupla do homem – alma e corpo, feminino e masculino – está presente na literatura ocidental desde a Gênese, na qual a criação do gênero humano é explicada pela partição do ente em dois princípios distintos, quase opostos, mas complementares e partícipes de uma mesma unidade metafísica. Essa situação de duplicidade permaneceu no imaginário ocidental e multiplicou-se pelas inúmeras narrativas nas quais os espelhos, reflexos e sombras assumem a simbologia das duas partes de um mesmo todo que se buscam no intuito de solucionar o que, em verdade, é um sinal de insuficiência do ser como uno.

Em Aura, instigante novela escrita pelo mexicano Carlos Fuentes em 1962, o autor revisita a idéia do duplo no que ela guarda de sinistro e perturbador. É uma novela fantástica, se assumimos o termo como referente à “vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural” : a narrativa acompanha a trajetória de Felipe Montero, um “historiador joven, ordenado, escrupuloso” ao qual desperta a atenção um anúncio de jornal que parece ter sido escrito para ele, convocando para um emprego em uma residência particular na qual uma viúva, Consuelo, deseja organizar em um livro os diários e escritos do esposo, um general falecido há setenta anos, antes que ela mesma venha a morrer; uma vez aceita a incumbência, Felipe passa a viver na casa lúgubre, na qual encontra um interesse amoroso na jovem Aura, apresentada como sobrinha e cuidadora da residência e da senhora, e em cujo amor Felipe virá a descobrir seu próprio destino e as razões pelas quais fora chamado para tão estranha função.

Usando a expressão de Todorov, Felipe vacila diante dos acontecimentos inexplicáveis aos quais é apresentado – a simultaneidade e repetição das ações de Consuelo em Aura, o espaço claustrofóbico e os elementos inesperados e funestos que encontra na casa: de ratos que convivem harmoniosamente com a viúva às inexplicáveis incongruências que encontra entre as datas que pesquisa nos escritos do general e a história da velha senhora que o contratara. Em cada um desses elementos, a idéia do duplo é recorrente e reforça a impressão desconcertante que causa a novela de Fuentes: Consuelo e Aura mostram-se os dois lados de uma mesma mulher construída em dualidades – velhice e juventude, passado e presente, material e etéreo; os ratos reais que infestam o quarto de Consuelo são o oposto dos gatos cujo ronronar é ouvido por toda a casa, a imagem é vista pela clarabóia mas que não aparecem como formas concretas de existência; os fatos e datas relatados nos documentos, matéria-prima do ofício de Felipe Montero, são a negação da realidade com que o jovem convive nos dias de sua tarefa naquela casa.

O duplo na literatura e na cultura ocidental guarda também uma idéia de diabólico – a lenda de Lúcifer como o anjo mais perfeito de Deus que se torna seu maior contendor na disputa pela alma dos homens é o exemplo mais notável. Em Aura, símbolos religiosos convivem com elementos comumente associados à magia negra e corroboram o jogo de duplicidade estabelecido pelo autor. A sobrevivência das personagens, sua presentificação no mundo e a própria razão de ser da permanência do protagonista naquela casa mostram-se intimamente ligadas à idéia algo demoníaca de busca da eternidade, um tema igualmente caro aos escritores ocidentais.

FUENTES, Carlos.
Aura.
(Ed. L&PM)
Contudo, Aura destaca-se no panorama do gênero novelesco – dos textos aos quais os falantes de língua espanhola chamam novela corta – pela forma como o autor incluiu o leitor no universo de seu tema principal, a duplicidade da vida: o narrador-protagonista é apresentado por meio de uma narrativa totalmente construída na segunda pessoa do singular – em espanhol, . Tal forma, que na tradução para o português – você – pode sugerir uma tentativa de generalização do texto por parte do autor, traz no original ao leitor a sensação de uma total inclusão sua na história; cabe ressaltar que o pronome pessoal , em espanhol, é bastante informal e denota intimidade entre os interlocutores, e raramente é usado como forma generalizante naquela língua da mesma maneira que no português. Com isso, o leitor de Aura é lançado diretamente na narrativa: “Lees ese anuncio: una oferta de esa naturaleza no se hace todos los dias. Lees y relees el aviso. Parece dirigido a ti, a nadie más. (...) Tu tomas el lugar de Aura, estiras las piernas, enciendes um cigarillo, invadido por um placer que jamás hás conocido, que sabías parte de tí (...) .” A história de Felipe Monturo passa a ser sua história, e corrobora para tal impressão o uso ocasional de imperativos – como se o narrador estivesse a controlar as ações do protagonista, desse tú a quem se refere continuamente, ao invés de meramente as contar . O leitor torna-se um duplo do protagonista, Felipe Montero, de quem acompanha os passos, as sensações e os pensamentos durante todo seu percurso pelo espaço labiríntico de Aura.

A novela, na qual as duplicidades entre vida e morte, memória e esquecimento, juventude e decadência são a temática principal, coaduna-se com o simbolismo maior do duplo mesmo ao propor algo distinto, ainda que não completamente, ao que a psicanálise e a literatura – do Dorian Gray de Wilde ao Dr. Jeckyll de Stevenson – sempre encontraram como solução para tal enigma: a assimilação do duplo, sua aceitação, não tem outro objetivo senão o de aniquilá-lo, já que o espelho, ao tempo que mostra o reflexo, também deturpa a imagem refletida. Em Aura, a assimilação representa também a sobrevivência, a eternidade de uma essência que só encontrará razão de ser entre as paredes de esquecimento da infausta casa.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.
***A coluna foi publicada excepcionalmente na sexta-feira por conta do feriado de Corpus Christi.

Um comentário: