O baile retratado em Guerra e Paz: Andrei e Natasha dançam pela primeira vez. |
O livro, escrito durante seis anos e publicado pela primeira vez em 1863, por capítulos, em um jornal de São Petersburgo, nasceu de um descontentamento de Tolstói com a historiografia russa. Para o escritor, a História era contada de modo frio e distante, dando ênfase exagerada aos grandes feitos de seus principais atores, mas ignorando os resultados dessas decisões de alto escalão na vida do cidadão comum. Como o Victor Hugo de Os Miseráveis, Tolstói usa um imenso pano de fundo histórico para, a partir dele, contar os horrores da guerra no olhar de personagens individualizadas e realistas.
O cenário escolhido por Tolstói é o das Guerras Napoleônicas, e por uma razão bem definida: para o escritor, aqueles acontecimentos históricos marcaram o nascimento da moderna nacionalidade russa e é nesse sentido que Guerra e Paz torna-se um romance rico e cativante. Poucos anos depois da Revolução Francesa, a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, no chamado Golpe do 18 Brumário - em nove de novembro de 1799 - e, posteriormente, na aclamação como Imperador da França marcam uma mudança significativa no panorama político da Europa. Napoleão personifica o novo espírito republicano que ameaça o poder dos monarcas do Velho Continente, e a resposta de monarquias tradicionais como as da Rússia, Áustria e Inglaterra veio na forma de uma coalisão, em 1805, para derrotar o avanço das tropas napoleônicas em três frentes de combate. No ano seguinte, Napoleão decreta um embargo continental à Inglaterra, declarando-se em estado de guerra com qualquer nação europeia que venha a manter relações comerciais com os britânicos. A escolha soberana da Rússia de desrespeitar tal ingerência francesa foi um dos principais motivos para a guerra entre esses dois países em 1812.
O autor apresenta sua vasta pesquisa histórica sobre tais acontecimentos, que incluiu visitas aos locais de batalha e entrevistas com historiadores russos e franceses, entremeada com a vida de quatro famílias da aristocracia moscovita - os Bezukhov, os Rostov, os Bolkonski e os Kuragin - e, mais particularmente, com três personagens principais que irão conduzir o olhar do leitor sobre a guerra: Pierre Bezukhov, o generoso e tímido intelectual que, como filho bastardo, herda a fortuna de seu pai; o príncipe Andrei Bolkonski, ambicioso e inteligente filho de um comandante militar reformado; e Natasha Rostov, a ingênua e sonhadora condessa que será o interesse amoroso de Andrei e Pierre ao longo da trama. A história do livro cobre o período de 1805 a 1820, mas o ano em que a trama mais se deterá é o de 1812 - data que marca a libertação da Rússia da ameaça napoleônica, o ano coincide também com a mudança de visão dos personagens centrais da obra, refletindo a própria renúncia russa à influência cultural francesa dominante na aristocracia.
Mais recente tradução para o inglês |
O campo, a terra russa, aparecem em Guerra e Paz como o caminho de redenção para o povo russo. O incêndio de Moscou, provocado como estratégia de guerra para que Bonaparte não tivesse como se manter na capital russa sem recursos e suprimentos, funciona no livro como um fogo sagrado que aproxima os moscovitas do campo aberto ao forçá-los a se refugiarem nas áreas rurais. Essa retirada para o campo fará com que a aristocracia moscovita, obrigada a viver com menos luxo e mais próxima de seus servos, aprenda o valor dessas pessoas e sua condição de iguais. Há uma razão importante para que Tolstói assim retrate aquele período histórico, ainda que a construção de uma nova Rússia tenha sido um processo que tomou, em verdade, algumas décadas: ele escreve o livro no momento em que, na Rússia, as grandes mudanças do tzar Alexandre I estão em andamento, dentre elas a libertação dos servos, de 1861. Tolstói era um grande defensor da ideia e foi um dos pioneiros a oferecer educação para as crianças filhas dos servos de sua propriedade, algo que o personagem Pierre também fará. O jovem Bezukhov, aliás, é o que melhor representa no romance essa Rússia aristocrática que, diante dos horrores da guerra, aprendeu a respeitar o heroísmo vestido de simplicidade dos camponeses e servos mais humildes.
Uma rara fotografia do autor, poucos anos antes de sua morte em 1910. |
Tolstói era um aristocrata e viveu sua juventude intensamente, iniciando estudos universitários em Direito e em Línguas Orientais, mas sem seguir adiante em nenhuma dessas áreas. Como acontece com os personagens principais de Guerra e Paz, sua vida é transformada ao se deparar com os horrores da guerra - é de sua experiência como militar na Guerra da Criméia que Tolstói consegue descrever com tamanho realismo o caos dos campos de batalha, sensação compartilhada com Pierre Bezukhov, seu quase alter-ego na obra. Pode-se observar na biografia de Tolstói também ecos do movimento de migração da vida urbana para o campo pelo qual passa boa parte dos aristocratas retratados no livro. Sem ser autobiográfico, o autor de Guerra e Paz transforma sua visão de mundo em arte nas descrições precisas e nos sentimentos profundamente humanos a partir dos quais seus personagens são retratados. É isso que torna o livro uma obra-prima do gênero romanesco, um livro que, segundo Simon Schama, "não é um livro apenas para ser lido, mas para ser vivido".
*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.
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